A Herança


"A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos."

Oswald de Andrade, Manifesto da Poesia Pau-Brasil

A Herança é o terceiro longa de Ozualdo Candeias, tendo sido realizado após A Margem e Meu Nome é... Tonho; assim como nos anteriores, há neste filme uma preocupação de se mostrar a poesia que pode e de fato emerge da pobreza, ou ainda, a poesia que emana a miséria brasileira. E qual a melhor maneira de tornar isso possível, que não encenando Shakespeare – exemplo de o que há de mais belo na poesia - em um cenário rural absolutamente brasileiro? É exatamente isso A Herança: Hamlet no sertão. O príncipe dinamarquês se transmuta em filho de latifundiário e todo o seu drama toma lugar no latifúndio que seu pai, assassinado, possuía. A intriga da peça é bem conhecida por todos: o tal príncipe é visitado pelo fantasma de seu pai e esse o avisa sobre um conluio entre seu próprio irmão e a rainha – sua outrora esposa - , tendo sido os dois os responsáveis pela sua morte. A partir daí uma série de peripécias se passam, e entre discussões sobre herança, tradição e humanidade, Hamlet consegue provar a verdade que o pai lhe soprara e acaba morrendo, assim como seu tio, em uma bela cena em que ambos se matam um ao outro.

A transposição desse cenário para um latifúndio, ou melhor, a sua recriação, é das mais inspiradas e geniais. A todo o drama criado pelo bardo inglês, Ozualdo acrescenta alguns elementos tipicamente nossos, como a briga pela terra: em A Herança há camponeses explorados vivendo no latifúndio e o seu drama está lá delineado, embora não possa aparecer plenamente pois que o filme não deixa para trás nunca que é Hamlet e por isso não muda o rumo dos acontecimentos da peça, embora por vezes incorpore alguns elementos estranhos, de modo a "completar" a obra. No final, por exemplo, com a morte do então rei (o tio de Hamlet) e do jovem príncipe, aparece uma carta, espécie de testamento deixado por esse, na qual se lê que todas as terras que lhe pertenciam foram deixadas para aqueles que nela trabalharam toda a sua vida. Ou seja, os camponeses. Reforma agrária?

Talvez o elemento mais marcante do filme seja o fato de ele ser mudo. Quer dizer, sem falas humanas. Essas aparecem como legendas (não intertítulos entre cenas, como no cinema mudo, mas legendas mesmo) enquanto podemos ouvir todo o som da natureza surgir – e como ele é rico em uma fazenda, com os pássaros, o vento e tudo o mais que a compõe. Pode-se dizer que nesse sentido o filme se dá em três níveis: lemos Shakespeare, ouvimos os sons da fazenda – o Brasil – e vemos o resultado do intercâmbio entre esses dois. Em apenas dois momentos há voz humana: a cena em que Hamlet traz o teatro que encena uma situação similar a da morte de seu pai, de modo a deixar aparecer a seu tio que ele sabe do acontecido, surge no filme de Candeias como a apresentação de uma dupla de violeiros, meio repentistas. A música que cantam narra a história do assassinato, e essa música nós ouvimos: ela também é um som nativo, também é Brasil em sua essência.

O outro é aquele do famoso monólogo do "to be or not to be": ao invés de um crânio humano, o nosso Hamlet segura um crânio de boi, símbolo das paisagens maltratadas pela seca, e de sua garganta ecoa o grito: tchu bí or nó tchu bi! Há diversas cenas exemplares, em que o diretor brinca de modo extremamente perspicaz e pertinente com a obra secular, como no brado – que aqui é legenda – do herdeiro, que, ao descobrir o tipo de ações que vêm sendo praticadas em sua propriedade, exclama: "Há algo de podre no fazendão!"

O que quero dizer é que foi com grande senso de humor e leveza que foi realizada A Herança para dar um recado que é sério e que o autor da epígrafe já tinha vislumbrado: é preciso buscar uma brasilidade, alcançar uma identidade nacional de onde nasça poesia que seja nossa, uma estética de origem brasileira. Candeias o faz num movimento dialético, em que a tese é a situação do sertão, a antítese, Shakespeare e a síntese, seu filme. E faz isso de forma lapidar.

Juliana Fausto