Um
Grito na Noite
Sobre
Na Boca da Noite Brasil, 1970

Na
Boca da Noite
de Walter Lima Jr.
Muitos são os elementos
que fazem de Na Boca da Noite um evento especial dentro do frutífero
cinema brasileiro de reação à vasta onda de repressão
que assolava o país no início da década de setenta:
o principal deles, que parece ser fonte de toda a construção
do filme, está sintetizada em um depoimento do próprio Walter
Lima Jr.:
"De alguma maneira, eu devia esse depoimento.
Meu irmão estava preso.Amigos saíam do país.Companheiros
de cinema sentiam-se de mãos atadas.As coisas estavam desabando
em cima de nossas cabeças. Eu não tinha nenhum compromisso
político formal, só uma raiva emocional."
Pois é essa raiva emocional, entrelaçada
com toda a carga explicitamente política do personagem de Ruben
Correa e com a ingenuidade maliciosa do faxineiro vivido por Ivan de Albuquerque,
que dão ao filme um peso dramático especial: a raiva política
se mescla ao terror pessoal, o didatismo sarcástico de filmes como
Brasil ano 2000 dá espaço à imagem da espontaneidade,
das palavras jorrando da boca dos personagens/atores e se jogando da tela
do cinema. Essa precariedade de produção, essa simplicidade
do filme é que dá seu caráter de emergência,
de grito consistente, porém perdido... O que se vê é
mais do que a história de dois homens numa agência bancária
– o que se vê são dois atores e um diretor se desfazendo
e refazendo em filme em prol de um grito engasgado e difícil de
expressar: essa mistura de raiva com tristeza, vontade de mudança
e melancolia...
Uma espécie de crônica extremada
do terror – do vai e vem imerso em grades, dos passantes na rua, de seus
personagens enclausurados. Incapacitados de fugir, histéricos,
os dois homens misturam suas histórias e seus temores – o bancário
quer se libertar daquela sociedade mas depende de seu (da sociedade) dinheiro
e estabilidade para sobreviver; o faxineiro leva uma vida incerta e pobre,
porém amarrado dentro daqueles seus valores rígidos é
difícil acreditar numa saída. Os dois se debatem nessa prisão
que é tudo e é todos, nessas paredes que parecem se tornar
invisíveis e passar como naturais. Que os cercam na recorrente
imagem da sirene que atravessa ruas incertas e no tiro (sem origem exata)
que atinge e mata o personagem de Ivan na última cena do filme.
Em certo ponto, num dos momentos mais fortes
da narrativa, Ruben Correa fala para a câmera sobre a própria
sala do cinema ("essa luz que passa sobre suas cabeças")
como um produto de um trabalho humano, como uma construção.
E são dessas prisões construídas que o filme fala,
não como um manifesto supostamente racional ou explicativo – mas
como uma explícita oratória emocionada e tocada por aquela
realidade a qual se critica.
Na Boca da Noite não pretende
explicar o que se passava, não tenta mostrar sua crítica
como uma revelação da verdade dos fatos, da real situação
do país naquele momento – o filme trabalha com o registro de um
sentimento, de uma situação emocional vivida por grande
parte daquela geração e sendo assim, é muito mais
rica do que a tentativa de uma ironia crítica ou de um planfletarismo
didatizante. Na Boca da Noite tem a força dos filmes conscientes
de sua vontade, e mais: produz-se dentro dessa vontade como uma emergência
que engloba texto, atuações, câmera e cenografia.
Tanto é assim que o filme não se parece precário,
pois dentro de seu universo, a precariedade faz parte de um todo, de um
peso único que atravessa todo o filme, como se todo o filme fosse
um mesmo e rouco grito. Um grito na noite.
Felipe Bragança
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