Sinal dos Tempos

 

Parece que nada vai mais contra os mandamentos do mundo atual, que dá primazia à produção ininterrupta de bens de consumo, do que o ato de pensar. Essa atitude, que leva naturalmente ao questionamento e à crítica, faz parte de uma prática temida e muitas vezes proibida pela organização extremamente objetiva de nossa sociedade. Afinal, como conciliar reflexão subjetiva com a necessidade de velocidade? Como relacionar a mecanização de nosso cotidiano com um posicionamento crítico interno aparentemente nada produtivo?

Mesmo que vozes dissonantes digam que o processo não pode ser irreversível, o que se tem acompanhado é uma vitória acachapante do modo objetivo voltado para a produção e para a inclusão de todas as atividades humanas na esfera do consumo mediado pela economia. Os termos dessa vitória, contrária a divagações, como não podiam deixar de ser, são bem claros: Tudo tem o direito de existir a partir do momento que consegue público comprador.

Quando o pensamento artístico e os seus produtos diretos, cinema, teatro, literatura e muitos outros, se vêem forçados a se moverem em um mundo que impõe tais condições para existirem e prosperarem, o primeiro resultado desse reconhecimento é a adequação. Sobreviver em um mercado consumidor significa fazer concessões. A transformação da arte em objeto de consumo passa por uma rota de massificação. Nesse ponto, a fruição artística deixa de ser livre e se torna guiada e desejada. Conhecer arte vira obrigação, assim como o trabalho diário. Para uma obra que se diz revolucionária, em eras de cultura de massa, a grande dúvida não surge quanto ao seu caráter realmente revolucionário ou não, mas sim quanto ao modo como o público vai entendê-la.

A obviedade que toma conta da difusão de arte, a falta de interesse pelo novo, a preguiça para procurar vias alternativas se encaixam perfeitamente nas vontades dos espíritos apaziguados pela falsa impressão de que o mundo é o melhor dos mundos, de que chegamos ao auge da organização. Tendo a convicção de que não temos mais nada para fazer aqui a não ser melhorarmos o que já existe, acabamos com um sonho de buscar uma plenitude, aceitamos que não há nada fora o nosso velho sistema e que os defeitos, se existem, serão consertados. Não admitimos que talvez sejam consequência da mal estruturação do próprio sistema, que não é único. Tais cogitações resultam da reflexão, da perda de tempo, da despreocupação com o objetivo, com a melhoria ou a produção.

Exercer uma crítica seria a principal condição para libertar a fruição artística das correntes da estagnação. A produção de arte está em alta justamente porque a compreensão de todo esse volume de material é falha. Caracterizar essa produção é colocá-la de acordo com os ditames de nosso tempo consumista em que o público dá valor ao próprio ato de consumir e não de entender, criticar. Parar para pensar, debater, coloca em risco toda a estrutura social atual, podendo até levar a uma rejeição completa da realidade como nos é apresentada. Nada mais indesejado para a preguiça satisfeita que impera no presente.

Criticar é a tentativa de conhecer e entender profundamente o objeto artístico. É não se prender ao gosto, é não atribuir valor arbitrário, e quando faze-lo, justificar tal determinação usando um pensamento livre, elevado. Crítica é o que confere à arte o seu significado e é através dela que é possível pensar em evolução dessa arte. Cabe à crítica traçar um método de análise completo que, sem dispensar a produção, leve à conceituação das realizações artísticas. É complexo, difícil e exigente, sendo o pensamento crítico por isso rejeitado ao por em dúvida o próprio ato de produzir.

Mas até a crítica precisa de legitimação. Enquanto o público ainda pensa que consome arte a crítica ajuda a garantir essa impressão e consegue assim ser vista como autêntica. A sua função no momento é reforçar todos os valores que garantem a adequação da arte ao mercado sem deixar transparecer essa realidade, conferindo uma aura de liberdade à produção artística atual. Crítica também para consumo rápido que encontra assim a sua condição para ser feita. O público a vê como algo que permite entender a tão variada arte de hoje sem saber que muitas vezes está tão desprovida de pensamento que sua ajuda para essa compreensão é nula.

Quando a questão é o cinema, a mais industrial das artes, é normal a padronização da crítica, juntamente com a do seu objeto. Uma democratização dos meios de difusão de idéias que chegou com a internet, uma vontade de grupos isolados comprometidos com o pensamento tem garantido a sobrevivência de uma crítica mais voltada para o esclarecimento do fenômeno cinematográfico. Aparecem revistas de baixo custo, zines e panfletos preocupados em entender e refletir sobre a produção de cinema e os seus problemas diversos. Atitudes, sem dúvida, muito bem intencionadas que, infelizmente não encontram um interesse acolhedor por parte do público. Ainda impera a crítica rasteira que molda percepções na mesma proporção que é difundida em larga escala.

A verdadeira crítica, a que coloca valores em crise, é a conclusão que se tira desse cenário, sempre existiu e, pelo bem do homem, sempre existirá. O fenômeno atual é apenas caracterizado pela falta de atenção que as massas dirigem a ela. Se pararmos para olhar em volta poderemos então pensar que a crítica em si vai muito bem. Ela vive e se organiza para se mostrar apesar de não ser muito percebida e de não provocar o efeito desejado. Não faz sentido então reclamar e falar mal da crítica quando o que se deve realmente por em questão é a estruturação de nossa sociedade que repele o mais importante dos atos que é o pensamento, e assim, junto com a reflexão crítica, aniquila universidades, filosofia, política e muitas outras disciplinas e as coloca juntas em um mar de mesmice inerte reservado às coisas que hoje atravancam o nosso caminho em direção à mecanização total. Sinal dos tempos.

João Mors Cabral