Questionário à crítica
Questionário
no dia 20 de dezembro, esse questionário foi enviado a dez críticos
de cinema do Rio e de São Paulo. Provavelmente pelo adiantado do
prazo, não puderam responder Sérgio Augusto (Bundas, ex-Pasquim,
ex-Veja), Susana Schild (Jornal do Brasil, O Estado de São Paulo),
Fernando Albagli (Jornal do Brasil), Eduardo Souza Lima (O Globo) e Luiz
Carlos Merten (O Estado de São Paulo).
Eis as perguntas
1. O espaço dado à
crítica de cinema hoje é suficiente?
2. O que deve um crítico saber para escrever sobre cinema?
3. Os críticos que hoje escrevem são preparados para escrever sobre cinema?
4. A crítica deve antes orientar o espectador ou tratar do filme em seus
aspectos artísticos?
5. Que tipo de influência a crítica de cinema exerce:
a) no público leitor;
b) no sucesso de um filme?
6. Você crê que a influência da crítica seja a mesma:
a) no cinema nacional;
b) no cinema dito comercial;
c) nos circuitos de arte?
7. A crítica é necessária hoje em dia?
Nelson Hoineff
(O Dia)
1. O espaço tende a ser muito menos para a crítica propriamente dita do
que para resenhas essencialmente qualificativas. O que se pede de um crítico
na maior parte dos veículos é que indique, em poucas linhas, o que o leitor
deve ou não deve assistir. Não há, nesse contexto, qualquer espaço para
a análise ou encorajamento da reflexão sobre o filme abordado.
2. O crítico deve ter, antes de mais nada, um repertório muito extenso
da cinematografia e a capacidade de contextualizar os filmes no universo
sócio-político-cultural em que eles se inserem. É importante também para
o crítico ter também conhecimentos bem assentados sobre técnicas de produção
(fotografia, montagem, efeitos, etc) e, sem sombra de dúvida, sobre o
mercado cinematográfico. Essencial ainda é a disposição para discutir
cada obra sem juizos pré-estabelecidos sobre seus posicionamentos estéticos
ou mercadológicos.
3. Alguns sim, outros não. Tal como acontece em qualquer outra atividade.
Há por exemplo cineastas bem preparados ou mal preparados para realizar
um filme.
4. A tendência de simplesmente orientar o espectador é quase que a negação
da atividade crítica. Para opinar subjetivamente não há necessidade de
qualquer formação especializada. Há jornais e revistas que assumem isso
-e preferem a opinião comum (inclusive de repórteres ou redatores sem
qualquer vínculo com o estudo de cinema) do que a análise crítica. Alguns
editores acreditam que dessa forma chegarão mais perto do gosto mediano.
É como se quisessem confrontar a opinião do veículo com a opinião do público
médio - e evidentemente não é para isso que existe a crítica de arte.
5. O público tende a procurar nas resenhas a indicação sumária sobre se
deve ou não ir ver o filme. Uma estrelinha, um bonequinho, etc. Dificilmente
esse público poderia encontrar uma forma pior de ajudá-lo a decidir ver
ou deixar de ver um filme. Quanto ao sucesso do filme, isso depende fundamentalmente
do tipo de obra. A influência sobre blockbusters é muito pequena. Em compensação,
a crítica é capaz de determinar o sucesso ou o fracasso de filmes voltados
para públicos mais restritos - que é onde costumam estar os trabalhos
mais autorais, mas susceptíveis às pesquenas influências sobre o público.
6. A crítica é extremamente influente para filmes nacionais e para os
chamados circuitos de arte. Bem menos para as superproduções.
7. A crítica é cada vez mais necessária, na mesma medida, aliás, em que
o achismo é cada vez mais nocivo - sobretudo porque o leitor tende a confundi-lo
com o texto crítico.
David França
Mendes (ex-crítico do Jornal do Brasil. Atualmente é roteirista
e dirigiu recentemente o filme 2000 Nordestes)
1. Não
2. Deve saber pensar. Deve se interessar pela vida mais que pelo cinema,
para não ficar estúpido. Deve ter mais prazer em escrever sobre os filmes
de que ele gosta do que sobre os filmes de que não gosta. Deve ler muito,
para escrever pelo menos direitinho. Deve - deve, não, precisa - conhecer
pessoalmente o processo de fazer um filme. Ele precisa saber onde, exatamente,
a criação se dá, no cinema, e sob quais circunstâncias, para não ficar
escrevendo bobagens como "fulano dirigiu com mão forte". Deve fazer escolhas,
ter uma visão ampla do cinema e saber que há incontáveis maneiras de se
fazer bom cinema.
3. Passo
4. A crítica é, ou antes, era uma forma literária. É isso que ela precisaria
voltar a ser. Uma forma literária essencialmente generosa. Eu, quando
escrevia crítica, buscava um diálogo. Eu não queria dizer se um filme
era bom ou ruim, eu queria conversar com o filme.
A crítica teria também a função de informar mais profundamente que as
matérias "não-críticas". Informar algo mais que o orçamento do filme ou
os prêmios que ganhou em festivais. Informar sobre as relações daquele
filme com o mundo, com outros filmes, com a técnica (aliás, é absurdo
como os críticos em geral desconhecem técnica), com outras artes. Dar
referências ao leitor. Tratar o leitor como alguém que tem a faculdade
de pensar e torcer para que ele a use.
5. a) Não sei. Não sou público leitor. b) Provavelmente uma influência
inversamente proporcional à verba publicitária do filme. De forma que
o crítico tem mais "poder" sobre o filme que tem menos dinheiro.
6. A resposta anterior serve aqui. Quanto mais recursos publicitários
um filme tem, menos importância tem a palavra dos críticos.
7. Do jeito que é feita? Não. É quase um mal.
Ricardo Cota (Jornal
do Brasil)
1. Não. Há um certo pacto editorial de dar preferência a matérias informativas,
que muitas vezes reproduzem releases, a textos críticos. Nada contra.
Uma boa entrevista tem o seu valor. Acontece que tanto matérias como entrevistas
costumam prestigiar o aspecto mais superficial da informação sem aprofundar
o lado técnico, a incursão dramática e mesmo o esforço intelectual dos
entrevistados. Não é um problema do Brasil. Basta ver publicações como
as francesas Premiere e Studio para constatar uma compreensão do cinema
como extensão do mundo fashion. Na verdade, o que existe é um comprometimento
muito grande das publicações com as grandes distribuidoras de filmes,
que investem barbaridade em publicidade. A crítica vai a reboque. A internet,
se não cair no mesmo vício, pode ser uma salvação. Aliás, vem sendo. Quando
escrevo para um espaço como o no.com.br tenho uma liberdade de texto muito
maior do que para a Programa. Agora, apesar do pouco espaço, uma coisa
deve ser dita: não é o número de linhas que determina a relevância do
texto. Quem tem o que dizer diz em 10 ou em 100 linhas.
2. Em primeiro lugar, português. Um argumento discutível traduzido num
texto limpo, claro e fluente terá sempre uma leitura maior do que uma
sacada genial escrita com preguiça e erros gramaticais ou ortográficos.
É básico, porém necessário. Depois, viver o cinema. Mais importante do
que somar títulos ao currículo de cinéfilo é aprofundar o conhecimento
existencial através da discussão dos filmes, vivenciando-os com a mesma
intensidade com que se vive a vida. Tudo é cinema.
3. Não existe uma preparação prévia para quem escreve sobre cinema. Qualquer
um, desde que formado em jornalismo, pode preencher esse posto. Isso é
perigoso e acarreta distorções visíveis. Não sei como se poderia exigir
conhecimento do jornalista. Só as próprias redações podem fazer isso.
A grande verdade é a seguinte: começar a escrever sobre cinema é difícil.
Faltam mestres. Eu felizmente tive, e tenho, um: Carlos Alberto Mattos.
4. Nem uma coisa nem outra. A crítica deve mostrar que é possível pensar
a vida a partir do cinema. Se isso for feito com informação, não orientação,
e análise dos aspectos artísticos, o crítico estará oferecendo um mínimo
de honestidade ao leitor.
5. a) A má crítica - superficial, gratuitamente irônica, tendenciosa -
nenhuma. A boa - aquela que investiga, elabora uma reflexão, questiona
- pode mover mundos. b) Depende. Para o cinema comercial, as execráveis
cotações podem servir como apêndice publicitário. E só. Quem vê bonequinho
e estrelinha está se lixando para o texto. Para o cinema menos comercial,
restrito aos circuitos alternativos, aí sim a crítica pode contribuir.
E muito. Qume lê crítica se lixa para a cotação.
6. a) Para o cinema nacional, com seu histórico de discriminação, preconceito
e subjugação comercial, a crítica tem uma influência decisiva. Foi graças
ao esforço de nomes como Paulo Emílio Salles Gomes que se tornou possível
reavaliar o cinema nacional e abrir novas frentes criativas. Qualquer
olhar sobre a nossa realidade merece atenção por ser resultado de um esforço
contra as maiores adversidades. Sem a crítica, não haveria, nem continuará
havendo, cinema no Brasil. Por isso é preciso que quem a exerça o faça
com muita responsabilidade. b) Embora acredite que a crítica influencie
pouco o desempenho comercial desses filmes, acho que eles oferecem riquíssimo
material para a reflexão. Nas entrelinhas de um mau filme podem estar
camufladas as mais surpreendente revelações. Além do mais, é possível
conjugar bilheteria e qualidade. Uma coisa não anula a outra. c) Muito
importante. É o público mais disposto a viver o cinema. Não se limita
à experiência da sala de projeção. Quer debatê-lo, discuti-lo, vivenciá-lo.
Nos circuitos de arte a crítica resiste.
7. Sempre será. Durante muito tempo a crítica foi vista como atividade
de recalcados. Quem não faz, critica. Flaubert tem responsabilidade nisso,
ao escrever que o crítico era um espião no mundo das artes. É claro que
ele se referia a uma outra crítica, normativa, castradora, arbitrária.
Hoje já é possível ver a crítica como extensão de uma atividade criativa.
Os filmes não terminam nunca. Eles continuam a se desenvolver nos textos.
Enquanto a crítica impulsionar reflexões, provocar miradas diferentes
sobre a realidade, assim como os bons filmes, não há porque duvidar de
sua necessidade. Escrever sobre cinema é manter aceso o projetor. Mesmo
depois de terminada a sessão.
Inácio Araújo
(Folha de São Paulo e roteirista)
1. Existe uma crise da crítica, que me parece um ponto fundamental. Em
um passado nem tão remoto assim, sabia-se com razoável segurança de que
ponto de vista falava tal ou tal crítico. Era possível distinguir o que
pensava o Salvyano Cavalcanti, o Avellar, o Ely Azeredo, o Biáfora, o
Paulo Emilio etc. Sobretudo, existia um pensamento sobre o cinema, acreditava-se
no cinema como a grande arte moderna e popular do século.
Hoje em dia existe uma mudança nos jornais, como meio. Eles se tornaram
veículos de massa. Então, o tipo de discussão do passado não tem mais
espaço. Antigamente, falava-se de travelling como se fala de um dia nublado.
O leitor era, supunha-se, uma pessoa interessada. Se não soubesse o que
aquilo significava, tendia a ir atrás, etc. Hoje, parte-se do princípio
contrário: há que ser didático, explicar tudo muito bem. E, claro, quando
se explica muito a tendência é a acabar não dizendo nada, ou muito pouco.
Mas para mim isso explica menos a situação presente do que os rumos do
próprio cinema. Nos anos 50, 60, até 70, parecia existir certa unidade
na produção. Você sabia o que a nouvelle vague queria, ou o cinema novo,
ou o underground. E de certa forma as coisas se conectavam em várias partes
do mundo. Hoje os projetos são mais pessoais, e com isso a crítica tem
mais dificuldade de militar numa direção determinada. Ela vai mais no
caso a caso, por isso corre o risco de ficar um pouco no gosto/não gosto.
Ao mesmo tempo, essa grande época da crítica (e do cinema) coincide com
a crise econômica de Hollywood, que vai justamente de 1950 a meados dos
anos 70. Depois, Hollywood se reorganiza, reinstaura um sistema de estrelas,
passa a investir pesadamente em publicidade, numa publicidade que é cúmplice
do jornalismo noticioso, porque se apresenta como notícia. É o caso dos
"making of". São peças publicitárias, mas supostamente nos informam sobre
os bastidores de uma filmagem. Quem toma a palavra são os diretores, para
falar quais são suas intenções, os atores, para dizer que estão sempre
trabalhando com o diretor mais agradável e o texto mais profundo do mundo,
essas coisas.
Quer dizer, como a própria crítica se esvaziou, seu espaço foi tomado
em parte por essas imagens falsas, que acabam se apresentando como "a
verdade" do filme. Os estúdios levam jornalistas para passear em Hollywood.
Há correspondentes que fazem entrevistas, quase sempre vazias, mas que
criam a ilusão do ineditismo. Etc.
Tudo isso acaba
criando um sistema acrítico, que corresponde bem aos fins publicitários,
porque o público de hoje me parece ter uma relação bem mais preguiçosa
com o cinema do que há alguns anos. Na média, é claro. Não é por acaso
que os cinemas estão nos shoppings. Eles viraram, em boa parte, uma espécie
de complemento das compras. Mais uma distração do que uma diversão.
Mas isso não quer dizer que eu seja pessimista quanto à situação da crítica
(nem do cinema). Em São Paulo, a Folha ocupou, a partir de 1980, o espaço
da imprensa alternativa, do Pasquim, por exemplo. Hoje, já se criou um
novo espaço para a imprensa alternativa. Há sites como Contracampo, Mnemocine,
e revistas como Sinopse. Não faço juízo de valor de cada uma delas, isso
não importa. O que interessa é haver um movimento coletivo, de uma crítica
jovem, que pensa o cinema intensamente. Tenho a impressão de que daí surgirão
novidades importantes, e, espero, não apenas para a crítica.
2. Eu tenho dificuldade para responder a essa pergunta, porque nunca quis
ser um crítico de cinema e, ao mesmo tempo, sempre me tomei como um espectador
crítico. Eu fui montador, assistente de direção, roteirista, até dirigi
um episódio de um filme. Então, eu me preparei mais para ser realizador,
e quando comecei a escrever na Folha eu me tinha na conta de um amador.
Escrever era como conversar com meus amigos, com o Carlão, com o Jairo.
Um diálogo que acabava se estendendo a outras pessoas. E tenho procurado
continuar assim, no que a Folha me facilita muito, porque a tradição do
jornal é bastante coloquial.
Agora, o mundo mudou muito, e é meio frequente as pessoas fazerem essa
pergunta: o que eu preciso para ser crítico de cinema? Para mim é muito
espantoso, porque nunca foi um projeto de vida meu. O ato crítico para
mim sempre foi um pouco como respirar. Você não precisa escrever para
ser crítico e pode não ser crítico mesmo escrevendo resenhas em um jornal
de grande tiragem.
Há uma coisa que me parece certa: não dá para ser crítico sem ver filmes,
e nem só vendo filmes.
Finalmente, estamos numa civilização da imagem. Mas o que é a imagem?
A imagem é algo que se propõe como verdade, mas não é. A imagem é a coisa
mais incerta, mais impregnada de falsidade que existe. E, se o crítico
contemporâneo tem um papel no mundo me parece que é ajudar as pessoas
a distinguir o falso do que mais se aproxima da verdade. Essa questão
da imagem tem no cinema um paradigma, mas não está apenas lá. Está na
TV, no outdoor, na rua. Basta abrir os olhos e ver.
3. Há uma frase do Roland Barthes de que eu gosto muito, que é: criticar
quer dizer pôr em crise. O que significa pôr em crise? Se o sujeito diz:
ah, aqui há um erro de continuidade, isso significa que ele acredita que
a continuidade é uma verdade em si, que a ordem narrativa gira em torno
dela. Então, ele aceita essa ordem. Se ele está conforme com isso, seu
olhar gira em torno do "certo" e "errado" dentro desse critério. A mesma
coisa vale para a produção, para os atores (eu vejo dizerem com frequência:
ah, fulano está muito mal. Mas qual é o critério para dizer isso, a partir
de que escola de interpretação se fala, etc.?).
Isso acontece muito. É como se você julgasse o Kafka a partir do modo
de escrever do Balzac. Se você dissesse que o Guimarães Rosa escreve mal
porque não escreve como o Machado de Assis. Claro que isso é um absurdo
e ninguém faz em literatura. Mas em cinema, faz. Porque a escrita literária
está internalizada em nós, nós praticamente nascemos escrevendo. Mas o
cinema é diabólico, porque podemos seguir uma intriga sem precisar compreender
sua escrita. e porque hoje em dia as pessoas nascem na frente de imagens,
praticamente, mas nada se faz para que ela compreenda minimamente o tipo
de escrita que está implicado ali. Acho que meu único sonho pedagógico
é esse: ver a disseminação de uma disciplina que poderia se chamar educação
visual, que prepare as pessoas para decifrar esse mundo de imagens, ou
ao menos situar-se nele, não ser tão indefeso diante da imagem.
É evidente que existe uma outra armadilha aí, para quem escreve publicamente,
que é o sujeito se julgar ele próprio portador da palavra verdadeira.
Porque esse mecanismo é perverso. Quando escreve no jornal, as pessoas
te julgam como a pessoa "que sabe" de um assunto. Você se torna o tal
"sujeito suposto saber". Quem ignorar isso deixará de ver a crítica como
um questionamento das coisas.
4. Minha impressão é de que a crítica deve, antes de tudo, orientar o
espectador. O crítico deve ser uma pessoa que conviva com as imagens o
bastante para saber o quanto elas são perigosas, enganadoras. Acho que
esse pode ser um serviço público: advertir o espectador para o tanto de
mentira que existe nas imagens. O aspecto artístico, me parece, está diretamente
vinculado a isso. Agora, como eu disse aí em cima, se você acredita que
é um iluminado, que está dizendo a verdade, então está perdido. Quando
eu falo que é possível orientar o espectador quero dizer que existe possibilidade
de colocar ordem naquilo que se vê (pois o cinema é uma história já com
mais de 100 anos) e é, sobretudo, trazê-lo para o diálogo, colocá-lo na
conversa. O cinema deveria funcionar como um "chat" de internet: cada
um entra, troca idéias, etc. Só o que não se pode é pensar que essas idéias
não tenham uma ordenação. O espectador também precisa ter certa humildade
para saber que existe uma ordem. Não vale, por exemplo, dizer que a Mona
Lisa não interessa porque você não gosta de santos. Aí é querer impor
o império da subjetividade.
5. No sucesso de um filme, a influëncia é tão mais nula quanto maior for
o lançamento.
Já o leitor é um mistério. Um dia o Alcino Leite Neto, que foi editor
do Mais!, da Folha, e que antes disso foi presidente do CEC de Belo Horizonte
me falou que lá as pessoas liam o que eu escrevia, discutiam, concordavam,
discordavam, etc. Ele falou: vocês em S. Paulo não sabem a importância
que têm fora daqui. Eu nem diria que foi gratificante, mas foi muito estranho.
Porque o contato com lê jornal é muito indireto, parece que não existe.
Aliás, vocês conhecem o Alcino? É um crítico notável, é uma pena que não
goste de escrever críticas. E é um espírito empresarial. Ele sustentava
o CEC assim: passava o Pele de Asno, fazia um sucesso imenso, enchia
o CEC de dinheiro. Aí ficava três meses com um ciclo do Godard. Aí o dinheiro
acabava e ele passava o Pele de Asno outra vez.
6. Estou certo de que a a crítica não tem a menor influência sobre a bilheteria
das Panteras, por exemplo. Já o sujeito que acompanha a programação
do circuito dito de arte é mais permeável, tende a ser culta e aberta
a diálogo.
O desejável seria que a crítica não tivesse influência alguma sobre a
bilheteria. Mesmo porque não é porque eu acho um filme ruim que ele não
deva ser visto. Com frequência, você aprende mais com um mau filme do
que com um bom. É tão importante saber o que é certo fazer quanto o que
é errado.
Quanto ao cinema brasileiro é um problema tão complicado que seria melhor
fazer um número do Contracampo só sobre isso. Vou resumir o que penso,
que não tem nada a ver com a crítica. A TV é uma imagem insidiosa, porque
entra na sua casa com a promessa de trazer a realidade. Mas não é bem
isso que ela traz. A TV é uma máquina de venda. Não julgo se isso é bom
ou mau, mas acho que isso deveria ser esclarecido a todo mundo. A realidade
que a TV traz para a sua casa é, portanto, algo vendável, vinculado diretamente
ao anunciante e a certo tipo de expectativas. Quando o Brasil institui
um sistema de produção baseado na renúncia fiscal de empresas, o que ele
faz é transportar esse mesmo tipo de perversão para o cinema. Daí essa
coisa amalucada: um discurso compulsivo sobre o mercado, num país em que
o filme brasileiro simplesmente não tem mercado. Essa coisa deveria ser
repensada, me parece.
Agora, algo sobre a crítica: o cinema brasileiro é sempre uma "questão",
antes de ser cinema, por isso sempre foi muito difícil tratar com ele,
porque sempre quis certa "proteção", porque o mercado é muito ingrato
com ele, etc. O leitor não acompanha esse tipo de idéia. Me parece que
a única coisa possível, nessa atividade, é você dizer o que pensa, ser
o mais honesto possível com o leitor. E me parece que disso faz parte
também certa "tolerância" com o filme brasileiro, que não deve significar
nunca baixar a guarda para coisas ruins só porque são brasileiras, mas
assumir aquilo que o Paulo Emilio disse e que é definitivo: um filme brasileiro
nos fala infinitamente mais do que qualquer filme estrangeiro, e devemos
nos esforçar para compreender o que ele fala.
7. O Godard diz que a cultura é a regra; a arte, a exceção. A regra quer
matar a exceção. Algo assim. Penso que isso se aplica à crítica. Não ao
sujeito que escreve crítica, mas à crítica, ao criticismo, a essa atitude
que consiste em olhar o mundo e procurar ver alguma coisa além da evidência.
Ou, se se trata de um filme de Howard Hawks, aí é o contrário: o difícil,
o importante, é ver a evidência, como o Rivette demonstrou.
A gente vive em mundo cada vez mais de verdades feitas. São pacotes fechados
jogados na sua cara o tempo todo, que se pretende impor como realidade.
No cinema, por exemplo, nós vivemos às voltas com Hollywood, que é a maior
fábrica de propaganda que se pode imaginar. Você pode comprar salame Sadia,
por exemplo, mas ninguém se interessa por saber se o maquinário para salame
custou $ 1 milhão, nem se a fábrica fatura $ 10 milhões por ano com isso...
Foi isso que Hollywood conseguiu, entre outras coisas pela desmoralização
do que existe de trabalho intelectual no cinema, inclusive a crítica.
Essa máquina azeitada da indústria cultural conseguiu incutir no espectador
a idéia de subjetividade máxima (ou aproveitou-se de um sentimento de
subjetividade máxima que está no ar, tanto faz). Ele não pergunta mais
se ele é que pode estar enganado, quando vai ver um filme com narrativa
mais trabalhosa e não gosta. Ele não diz: é, eu não entendi, eu não gosto,
mas talvez eu é que não compreendo. Não. A ignorância tornou-se arrogante,
despreza as coisas apenas porque não as conhece.
E essa ignorância ocupa "lugares críticos", por assim dizer. A crítica
americana, que nunca foi boa, está infestada dessa gente que está lá para
defender o interesse "da indústria". Como se a gente devesse defender
a Sadia ou a Chapecó ao comer salame. E existe um lado do cinema que é
exatamente isso: salame. Não há a menor diferença.
Então, a crítica me parece necessária como uma espécie de "maquis", de
resistência. Porque Hollywood é também uma fabulosa máquina de lavagem
cerebral. Ninguém faz isso melhor do que eles, ninguém nunca fez, nem
russos, nem nada. Porque você impor Beleza Americana ao mundo como
um grande filme é, convenhamos, um feito e tanto. Então, uma parte da
função crítica consiste em separar, inclusive, Hollywood do cinema americano,
o salame e o cinema. O que nem sempre é fácil. Erra-se e vai se errar
muito. O que não se pode é perder os fundamentos, o ponto de vista.
No cinema, especificamente, tenho a impressão de que já há algum tempo
a crítica é corda e caçamba. Não pode existir hoje - salvo como exceção
espantosa - um cineasta que não seja ao mesmo tempo crítico da produção
que se faz. Porque esse seria um cineasta que não conhece o que se fez,
o que se faz na sua arte. Então, ele tende a ficar inventando a roda o
tempo todo.
Pedro Butcher (O
Globo)
1. Não. Aliás, não chamaria o que sai nos jornais de crítica, mas de resenha.
Desde que os jornais brasileiros criaram os suplementos especiais de fim
de semana que a "crítica" passou a se atrelar, primeiro, à data de estréia
dos filmes, e, segundo, a uma espécie de "guia de consumo" da cultura.
Não há mais espaço para a análise, e a prioridade está centrada nas reportagens
e entrevistas.
2. Um jornalista da área de cinema deve amar o cinema e ter um mínimo
de conhecimento de história e estética.
3. Nem todos, mas a maioria sim. A grande parte preenche os requisitos
acima. Podem não ter um conhecimento profundo, mas o conhecimento que
têm é equivalente ao espaço que têm para escrever sobre cinema.
4. Depende do veículo, é claro. No caso do Globo, orientar o espectador
é prioridade absoluta. É orientação da direção do jornal. Mas isso não
impede a busca de um equilíbio do tipo de informação que você está transmitindo
ao leitor.
5. As pessoas lêem as críticas de cinema mas não necessariamente se guiam
por elas. Por isso há pouca influência no sucesso ou não do filme (dependendo
do tipo de filme).
6. A influência da crítica é quase nenhuma nos produtos do chamado cinema
comercial e bem maior nos filmes brasileiros e "de arte". Mesmo assim,
nada impede que apareçam surpresas. Carlota Joaquina, por exemplo,
não recebeu mais que críticas medianas e fez o sucesso que fez.
7. É. Por mais que se critique a crítica (muitas vezes com razão), não
dá para negar que é através dela que os filmes iranianos, orientais, europeus,
africanos ganham espaço nos jornais. Acho que, em relação ao fim dos anos
80 e começo dos 90, por exemplo, a crítica melhorou muito, até. Perdeu
uma certa atitude cínica e, principalmente, de desconfiança em relação
ao cinema brasileiro.
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