Belair: quem tem tem,
quem não tem não tem
O ponto de partida de nossos
filmes deve ser
a instabilidade do cinema – como também
da nossa sociedade, da nossa estética,
dos nossos amores e do nosso sono
Rogério Sganzerla
Nós estamos fazendo
os melhores filmes
do mundo e vocês não estão entendendo nada
Júlio Bressane
É isso aí: no cine Brasil ano
2000 a estupidez é grande e a originalidade é rara, mas
felizes são os que conseguem se livrar da camisa-de-força
coletiva e alçar vôo rasante sobre as terras da incompreensão
e dos desfiles de asneiras – para estes há esperança. Os
conformados, em busca do bolo-de-noiva e do abacaxi made in Róliudi,
eles que se danem. Sem essa, colonialismo. Não dá pé,
o negócio é depenar o pavão – aí não
sobra quase nada, não é não, hipnotizadores
fracassados? – para tentar reverter o quadro. Não é outra
coisa que Contracampo tenta fazer (dizer é fazer,
nos ensina Bressane) nesse espaço modesto. E que os doutores anônimos,
especialistas em captação de recursos, nos tachem de sabotadores
– tanto melhor assim.
O parágrafo acima é uma boa
maneira de anunciar a atualidade do que só os piores cegos não
vêm: em tempos de retranca estética e cinema de resultados
(que resultados? Nem nos borderôs...), a Belair Filmes, 30 anos
depois, ainda é o que há. "Confiram com quem está
bola e de que lado se joga", já anunciava Torquato Neto na
Geléia Geral. E sem chute não tem gol: sete fitas
realizadas em três meses, sub-produção em toque de
caixa, anticartilha tropical, cinemagia em ponto de bala, supra-sumo da
experimentação, desconcerto geral – tudo isso e muito mais.
Daí a Belair ter sido um verdadeiro "manifesto programático
e pragmático" (obrigado, Carlos Adriano), contra o cinemão
acadêmico que, com a ajuda do juiz, começava a virar a partida
naqueles idos de 1970. No mais, depois do cartão vermelho que levou
a dupla do barulho ao exílio (quando o jeito foi explodir o estopim
em outros lugares), é o que disse Bressane: "A transgressão,
a rachadura que é a Belair ainda não foi examinada devidamente.
Os filmes não chegaram ao público. Continuam numa cortina
de silêncio. A Belair é uma lufada de ar novo na atmosfera
anestesiada e vacilante do cinema brasileiro".
E aí chegamos ao ponto, a recente
retrospectiva da Belair, motivo dessas linhas – e um momento privilegiado
para se refletir sobre os meandros do cinema no Brasil de hoje.
No capítulo da animação
cultural, o que dizer? Esse é um sentimento bastante pessoal (minha
dívida com o cinema de Sganzerla e Bressane é evidente),
mas vá lá: a pequena mostra Belair poderia ter sido
– sem exagero nem favor, mas com toda admiração de quem
sabe o que é bom – o acontecimento cinematográfico de um
ano em que a animação cultural carioca foi um verdadeiro
vexame. E só escrevo poderia porque os organizadores, mesmo
depois de muita batalha, não conseguiram patrocinador e/ou exibidor
para bancar um evento mais completo: por que será? (De qualquer
maneira, é preciso louvar o trabalho desses dois diletantes cuja
memória só me permite lembrar dos primeiros nomes, Leonardo
e Bruno.) Ora, a formação do público é assunto
diante do qual a incompetência dos programadores – e não
apenas do Rio, de todo o Brasil – de hora em hora fica mais evidente.
E eu falo de cinema porque é a minha praia, mas poderia estender
essas palavras a quase tudo que gire em torno de informação,
ou melhor, DEsinFORMAÇÃO. Cada vez mais, só dá
pangaré nesse páreo: é triste essa verdade a que
não devemos nunca nos acostumar. Não fosse a reabertura
da Cinemateca do MAM para as exibições, e o ano teria beirado
a nulidade. Os que poderiam fazer alguma coisa escolheram o caminho do
amaciamento demagógico em nome do público, esse sofisma
falsamente democrata.
Mas não é de hoje que quero
acreditar que ainda há platéia para um vírus (impossível
não se contaminar) como o da Belair – ou de outras fitas vibrantes,
selvagens, da melhor invenção caraíba. Faz algum
tempo que quero crer que essa platéia estava desencontrada, dispersa
no meio da pasmaceira e em eventos bissextos sem nenhuma preocupação
maior de reunião de pessoas e troca de idéias. E o que se
pode conferir pela freqüência no auditório da Casa de
Rui Barbosa é que – felizmente! – há mais moleques mal-comportados
nesse país do que se imaginava. Moleques, sim, porque poucas vezes
houve um público tão homogeneamente jovem numa sessão.
O que não deixa de ser bom sinal: os velhos, salvo as exceções
de sempre, parece que não têm mais nenhuma carta nova na
manga; são os jovens que devem mudar as regras envelhecidas desse
jogo. Pois é: geração que, esperamos, um dia vai
explodir – mas isso só o futuro pode dizer. Eis a lição:
é preciso pensar um pouco menos no sucesso e lembrar da sucessão
– Sganzerla e Bressane, como também Reichenbach, Coutinho, Nelson
Pereira e Mojica.
Enquanto isso, o negócio é
ser visionário, porque do jeito que está, o cinema brasileiro
é terra de ninguém. O conformismo covarde dos assessores
de marketing reina sem muito brilho nem oposição, mas os
melhores diretores não conseguem filmar. E quando conseguem, cadê
exibidor inteligente? Aí está a Belair que não deixa
mentir: nenhuma das sete maravilhas jamais foi lançada comercialmente
– e só para dar uma idéia da raridade do biscoito fino,
Cuidado Madame só teve sua primeira exibição
em pindorama em 1979, ou seja, depois de quase uma década de hibernação
imposta pelas otôridades kulturaiz. A única produção
Belair que, de alguma maneira, tinha chegado ao público nos últimos
anos era A Família do Barulho, miraculosamente lançada
em vídeo num pacote que incluía o bom e o melhor do Bressane.
Assim fica até difícil falar em nova platéia para
a Belair. A não-exibição dos filmes prejudicou pelo
menos a carreira de Sganzerla, que só voltou a realizar outro longa
em 77, com Abismu – e que levou mais dois anos até conseguir
entrar em cartaz! É difícil fazer cinema alheio (à
mediocridade) sem ser alheado (pelos imbecis e burguesóides de
plantão). Em matéria de cinema, no Brasil ainda impera o
proto-fascismo dos que não reconhecem o direito dos filmes livres
de existir e resistir – não é verdade, críticos de
jornaleco e defensores do mercado? Alô, alô, boçalidade:
tó pra vocês.
Aí, cabe a pergunta: a censura acabou?
É o caso de se pensar se há mesmo mais liberdade hoje do
que num dos períodos mais negros da História brasileira
– quando ainda assim a vitalidade artística era muito mais notável.
Censura de fato, censura econômica... só muda a embalagem.
Alguém aí ainda acredita que alguma coisa mudou? Ou o público
teveizado também não tem seu Big Brother 24
horas por dia?
No mais, para resumir o enredo, é
como dizia Grande Otelo/o rei do baralho: quem tem, tem; quem não
tem; não tem. E então chegamos ao ponto inevitável.
A constatação dw que a vitalidade (extra)cinematográfica
das fitas de Sganzerla e Bressane não se esgotou – ao contrário
do que o próprio Bressane, meio sem jeito, comentou antes das exibições,
que aqueles eram filmes lindamente datados, mas, enfim, datados. Essa
discussão tem muitos prolongamentos, mas por enquanto vale deixar
o dado: a data da Belair tem sua importância óbvia, mas é
preciso fazer com os filmes o mesmo movimento que a dupla sempre fez com
a cultura brasileira passada, ou seja, colocar em jogo a carta da atualidade,
do make it new poundiano. Afinal, a invenção nunca
se esgota, é assunto de retina – e não de rotina. Tudo que
foi dito até aqui foi para comprovar que a Belair é mais
do que ilustração deste ou daquele momento – é cinema
que transborda em cada fotograma, e essa é matéria-prima
cada vez mais rara e sempre atual. Como não guardar na memória
as imagens da favela em scope, câmera na mão, mostrando a
cidade lá embaixo, longe do Olimpo subdesenvolvido e selvagem de
Copacabana Mon Amour (um cinco estrelas a ser urgentemente restaurado)?
Ou a contribuição – à la Oswald – de todos os erros
de filmagem, inseridos na montagem final de A Família do Barulho?
Ou ainda o plano-seqüência de um rolo inteiro de película,
na descida do morro em Sem Essa Aranha, até hoje o mais
demencial da história cinema?
O resto é o resto: esperar por 2001,
com o lançamento das duas novas pérolas, Sob o Signo
do Caos e Dias de Nietzsche em Turim. E conferir mais uma vez
que os que estavam certos eram os Rogério Sganzerla e Júlio
Bressane da vida.
Juliano Tosi
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