Estudos
de caso
em busca da definição de uma patologia 
Toda esta discussão sobre o papel
do crítico, sobre a falência ou não desta área
do saber (ou desta arte, como prefiro pensar nela) pode parecer vazia
e apenas fruto de mentes doentias ou, no mínimo que seja, com mania
de perseguição ou percepção alterada da realidade,
se não pudermos expor casos práticos. Como se sabe, para
todo parecer científico é necessário o estudo de
casos. A exemplificação que leva ao diagnóstico em
medicina, à descoberta nas ciências investigativas, ao veredicto
em direito. Pois bem, para que nossa discussão não pareça
excessivamente etérea é que trago este texto: um breve,
objetivo, jornalístico eu diria (com o perdão da má
palavra) relato de casos estudados cuidadosamente na busca de um diagnóstico
preciso: a crítica, afinal, está doente? É culpada?
Caso 1: O misterioso filme
sem solução
Objetos de estudo: Gente da Sicília,
de Jean-Marie Straub e Daniéle Huillet; os textos "A quem
interessar possa", da Jaime Biaggio (O Globo) e "Difícil
e verborrágico", de Ricardo Largman (Jornal do Brasil).
Descrição: Straub e
Huillet, casal de cineastas de origem suíça, vêm realizando
filmes juntos desde 1962, totalizando 19 obras. Poucas delas foram sequer
exibidas em mostras no Brasil, que dirá em circuito. Gente da
Sicília estreou no Brasil na Mostra Internacional de São
Paulo de 1999, onde levou o prêmio da crítica. Suas exibições
na Mostra (das quais o relator deste caso presenciou duas), em geral,
causavam encantamento em muitos, da mesma forma que desagradavam outros
tantos. Lançado no Rio, quase um ano depois, recebe críticas
dos supracitados jornalistas, Biaggio e Largman. Segundo Biaggio, ao longo
de seus três parágrafos, totalizando 9x6,5cm do caderno Rio
Show, é "chato", e quem for ao cinema terá um
"bom sono". Segundo Largman, "é um filme difícil",
cita ainda um "incômodo silêncio" e localiza nele
uma "sensação de minimalismo, de obra experimental".
Ou, por outro lado, diz ele, "de amadorismo". Ao longo de seu
conciso parágrafo que ocupa 9x5cm da Revista Programa, ele ainda
acha espaço para sugerir que os cenários "em alguns
instantes, parecem declamações, noutros, um ensaio teatral
desprovido de emoção." Não é o caso,
em um relato objetivo, de contrapor argumentos, mas deve-se citar nos
autos a possibilidade de colocações diferentes, encontradas
no site Cineclick (www.cineclick.com.br), por José Nêumanne,
ou na própria Contracampo, edição 22, por Ruy Gardnier.
Deve-se ainda citar, para a evidência não ficar restrita
a críticas, um email coletado da internet, datado do dia 31/08/2000,
no qual uma certa Ilana Feldman refere-se ao filme, em uma lista de discussão
de cinema, da seguinte maneira: "Ode à oralidade, homenagem
ao que é vivo, exaltação do processo de criação...falar
dessas coisas é pouco perto do que o filme suscita e acaba banalizando
a própria experiência de assisti-lo. Tá aí.
Gente da Sicília coloca em foco, antes de tudo, a questão
da experiência e, como nenhuma experiência vem isolada, a
tradição."
Diagnóstico: Um claro caso
de confusão de identidade. Os supracitados Biaggio e Largman não
têm certeza de qual o seu papel social como jornalistas. As evidências
estão nos próprios textos: Largman afirma no final do seu
que "Gente da Sicília é assim: um filme complicado."
Desconhece que o papel do crítico é justamente usar suas
ferramentas para descomplicar o complicado, procurar as chaves de interpretação
possíveis, os paralelos, as comparações. Não
sabe mais se é crítico (mas, no alto do texto está
lá escrito: CRÍTICA) ou se é espectador. Simplesmente,
achou complicado. Pelo menos, que não se diga que não é
humilde. Já Biaggio vive sua crise mais às claras. Afirma
que "só crítico de cinema para gostar", mas no
alto de seu texto também consta a inscrição, sob
um Bonequinho que dorme com desapego à sua coluna vertebral: CINEMA
– CRÍTICA. Afinal, ele é um crítico ou não
é? Ambos os casos aparentam ter implicações mais
sérias, inclusive de malversação de verbas, pois
o jornal parece estar pagando o salário de profissionais que negam
suas próprias profissões. Mais sério ainda, nenhum
dos dois apresenta análises ou, para ser mais direto, críticas.
Basta lembrar que criticar não é concordar, mas ao renegar,
apresentar argumentos, exemplos, conceitos e proposições.
Portanto os textos e seus títulos são mentirosos em relação
ao público leitor, prometendo ser uma coisa que não são.
Ainda está em análise se são caso para o PROCON.
Caso 2: O prêmio que ninguém
viu
Objeto de estudo: O prêmio
da crítica dado para o filme Amores Perros na Mostra Internacional
de Cinema de São Paulo.
Descrição: A Mostra
Internacional de Cinema de São Paulo é, junto com o Festival
do Rio, um dos maiores eventos de cinema do Brasil, da América
Latina, e até do mundo. São exibidos durante suas duas semanas
perto de 200 filmes. No último dia são apresentados 3 prêmios
diferentes na cerimônia de encerramento. Um prêmio de júri
popular, cujos critérios são de fácil entendimento:
a cada sessão são distribuídas cédulas aos
espectadores, que dão notas aos filmes. Todos podem votar em todos
os filmes, a maior média vence. Um prêmio do júri
oficial, com critérios ainda mais claros: só concorrem filmes
que sejam ou o primeiro, segundo ou terceiro filmes de seus diretores.
Dentre estes, na primeira semana, os 12 de melhor média de notas
do público são os exibidos ao júri, que escolhem
seus favoritos. Finalmente, o prêmio da crítica. Aqui, há
uma pequena confusão. Em teoria, todos os filmes poderiam concorrer,
não há limites. Da mesma forma, todos os membros da Associação
de Críticos podem votar. Não há aí limites,
também. Sejam limites de idade, qualidade, ou, o que nos parece
o centro da atenções aqui, filmes vistos. Como boa parte
dos críticos trabalha no seu dia a dia cobrindo a mostra, fazendo
entrevistas, matérias, outros assuntos, etc, não se supõe
que passem perto de ver um terço, ou melhor, um quinto dos filmes
exibidos. Trata-se, portanto, de um prêmio sem critérios,
sem comparação. Supõe-se que um crítico, inclusive,
pode ter visto, digamos, dois filmes na Mostra, e dar o seu voto mesmo
assim. Há a possibilidade, numa hipótese longínqua
apenas a título de discussão, de que um crítico,
inclusive, peça ajuda aos outros para votar. Ele poderia perguntar:
"O que vocês viram?", ou ainda, "Mas é bom?"
No final deste processo, optou-se por Amores Perros. A título
de ilustração, a crítica do filme está na
cobertura de Contracampo à Mostra, e infelizmente, não é
muito favorável. Parece que o filme requenta formatos de outras
cinematografias com truques de linguagem bem urdidos, porém já
batidos, tendo em vista esconder do espectador seu moralismo, sua previsibilidade,
sua caretice em suma, atrás de uma aparência "moderninha".
Ainda a título de informação, apenas como complemento,
foram exibidos na Mostra: Branca de Neve, de João César
Monteiro; Yi Yi, de Edward Yang; Amor à Flor da Pele,
de Wong Kar-Wai; Código Desconhecido, de Michael Haneke;
Palavra e Utopia, de Manoel de Oliveira; Canções
do Segundo Andar, de Roy Andersson; O Círculo, de Jafar
Panahi; Liberdade, de Sharunas Bartas e Chunyang, de Im
Kwon-Taek.
Diagnóstico: Ilusões
de poder, onipotência e onipresença. Os membros da referida
Associação parecem acreditar poder julgar até mesmo
aquilo que não viram. Comparar coisas que nem foram analisadas.
Outro diagnóstico possível é o de ausência
completa de personalidade, ao seguir a opinião de algum outro como
se fosse a sua própria. E, finalmente, soberba, ao imaginar que
o resultado final, proveniente de tal encontro, tem alguma importância
para alguém que não sejam eles mesmos.
Caso 3: O misterioso caso do Bonequinho
que levantou e da crítica que sumiu.
Objetos de estudo: Crítica
do filme Xuxa Requebra, no jornal O Globo. Infelizmente foi a única
evidência possível de se localizar.
Descrição: Como os próprios
nomes indicam, o jornal O Globo pertence ao mesmo grupo proprietário
da TV Globo e da distribuidora de cinema Globo Filmes, entre outras empresas
do grupo. A Globo Filmes lança filmes que promovem nomes ligados
ou contratados da sua co-irmã, a rede de televisão. E o
jornal promove tais filmes, e mais, cobre e critica os mesmos. Em dezembro
de 1999, quando do lançamento do filme Xuxa Requebra, distribuído
pela Globo Filmes e estrelado por importante figura do elenco da emissora,
o jornal O Globo publicou uma crítica no qual seu Bonequinho (no
caso, o medidor universal de qualidade de uma obra cinematográfica)
assistia sentado ao filme. Tal classificação equivale dizer
que o filme seria "regular", ou até mesmo "bom".
Nas palavras do crítico, no entanto, não havia um elogio
sequer à produção, apenas palavras genéricas
de descrição, algumas inclusive quase críticas. No
ano de 2000, foram lançados mais dois filmes da chancela da Globo
Filmes, no caso Xuxa Popstar e Um Anjo Trapalhão.
A estes filmes, o Jornal do Brasil dedicou a cotação "Bola
Preta", o equivalente direto ao Bonequinho saindo do cinema. Estranhamente,
o Bonequinho em si parece estar ocupado, pois até agora não
assistiu aos filmes ou emitiu opinião.
Diagnóstico: Antes de tudo,
um caso claro de analfabetismo, ou no mínimo de miopia galopante,
que em alguns rincões do país é confundida por pura
falta de diagnóstico, com a incapacidade da leitura. Em 1999, o
Bonequinho parecia não conseguir ler a crítica abaixo dele,
e ficou apenas sentado (o que, pelo menos no que se refere à sua
coluna, deve ser considerada uma postura elogiável). Em 2000, o
diagnóstico é mais difícil pela ausência do
dito cujo. Pode ser até um caso de polícia, pois os tempos
estão difíceis, e o seqüestro não deve ser descartado.
Em ambos os casos, porém, parece um caso típico de conflito
de interesses, onde é pedido a um profissional que julgue e recomende
ou não um produto que sua própria empresa tenta vender.
Será, mais uma vez, caso de PROCON?
Caso 4: O mistério das frases
curtas
Objeto de estudo: Revista Veja São
Paulo, edição de 8 de novembro de 2000, páginas 92
e 94.
Descrição: A revista
Veja São Paulo dedica um pequeno espaço à recomendação
de filmes, que não se pode chegar a chamar de crítica (e,
em sendo justo e objetivo, ela não o faz). No dia 8, havia dois
destes pequenos quadrados com palavras, um com 7,5x2cm de textos e outro
com 4x3,5cm. No da página 92, o jornalista relata que "o francês
Jacques Rivette e o português Manoel de Oliveira são dois
dos mais prestigiados diretores europeus. Ambos, porém, perderam
a noção do tempo." Segue relatando que o filme de Rivette
demora três "loooongas" horas, enquanto os episódios
do filme de Oliveira "são puro tédio". Na página
94, referindo-se ao filme A Cela, o jornalista afirma que "o
diretor Tarsem Singh supera os limites da afetação estética".
Elogia a direção de arte, a cenografia e os figurinos do
filme, mas diz que "tanto luxo, porém, cai no vazio".
Diagnóstico: Dupla personalidade.
Falta de critérios claros no exercício de seu ofício.
Não explica o que é o cheio que se opõe ao vazio,
nem a ação que se opõe ao tédio. Fora isso,
prática ilegal da medicina, ao diagnosticar sem conhecimento de
causa a grave moléstia da "perda de noção de
tempo". Talvez caiba processo por difamação por conta
dos srs. Rivette e Oliveira, pelo agravamento de situações
de saúde que tal diagnóstico possa causar a eles, ambos
de idade avançada. Finalmente, ilusões de grandeza, onde
o jornalista insinua possuir o domínio de um senso comum superior
a partir do qual consiga distinguir bem o tédio e o vazio, possuindo
um ideal artístico totalizante que percebe o valor da "ação
com conteúdo". Um perigoso caso de início de totalitarismo,
que pode levar a ações perigosas e autoritárias.
Abusa do poder de sua posição para se referir a idosos e
a minorias (o sr. Singh é descendente de indianos).
Caso 5: O homem que sabia demais
Objeto de estudo: O texto "Cinema
para todos", de Jaime Biaggio, publicado no jornal O Globo, suplemento
Rio Show, em 17/11/2000.
Descrição: Criticando
o filme Janela Indiscreta, atribuído a um senhor Alfred
Hitchcock, o referido jornalista afirma que "sua obra se presta,
sim, a análises minuciosas à luz da teoria cinematográfica",
mas que da mesma forma, "o seu Osias da padaria, que está
se lixando para as teorias dos críticos, (pode) extrair deles o
mesmo prazer estético de um François Truffaut descobrindo
e dissecando o que está apenas subentendido." Mais à
frente ele afirma que "Truffautzetes podem se deliciar"
e que enquanto isso o "seu Osias se diverte com as historinhas".
Finalmente, quanto a uma possível oposição entre
o voyeurismo e a comunhão sexual, o jornalista afirma que "não
é cabecice, não: pode reparar".
Diagnóstico: Falso testemunho.
Após exaustivas investigações, não foi encontrado
o referido seu Osias da padaria para comprovar o testemunho do jornalista.
Não há provas, portanto, que ele tenha dito estas coisas,
ou sequer gostado do filme. Da mesma forma, não pudemos localizar
o grupo referido como Truffautzetes, o que leva a crer que pode
tratar-se de um nome falso para uma organização criminosa,
levando também a um potencial acobertamento pelo sr. Biaggio. Caso
fique comprovado que o sr. Osias não existe mesmo, o escriba pode
ser acusado de preconceito explícito pela Associação
dos Padeiros, ao insinuar a falta de capacidade de pensamento abstrato
da referida classe. Finalmente, o senhor Biaggio volta a demonstrar ilusões
de grandeza e um olhar essencialmente autoritário ao afirmar poder
diferenciar o que seja cabecice (embora sem aspas no texto original, tal
vernáculo não foi localizado em consulta a dicionários)
do que seja verdade. Da mesma forma, insinua saber dizer quais filmes
"se prestam a análises minuciosas" e quais não
se prestam. Há um erro duplo de função nesta afirmativa.
Primeiro, de ausência de conhecimento de suas obrigações
como "crítico" (mais uma vez, o box no alto do texto
afirma ser esta uma CRÍTICA), que deveria ser capaz de analisar
minuciosamente qualquer filme, seja ele Janela Indiscreta, ou num
exemplo, Gente da Sicília, ou mesmo, Intrigas ou
100 Garotas (em outro texto que não chega a valer estudo
de caso, mas precisa ser citado, o referido escriba afirmou serem alguns
destes filmes apenas para fãs de Malhação. O que
nos leva a concluir então que seu gosto, assim como seu conhecimento
teórico ou prático de cinema está em algum lugar
acima de Malhação e abaixo de Gente da Sicília).
Em segundo lugar comete um erro de avaliação, confundindo
qualidade e gosto com informação. O que ele quis dizer é
que, se analisado minuciosamente segundo seus critérios, Janela
Indiscreta é um bom filme, enquanto talvez na sua avaliação
(fica difícil julgar, pela ausência de argumentos), Gente
da Sicília ou Intrigas não.
Caso 6 e final: Um homem em estado
de confusão
Objetos de estudo: Os textos "Porque
a crítica se distancia tanto do público?", "Se
você fizer, eles virão" e "Popular é uma
coisa, ruim é outra" de Celso Sabadin, publicados no site
Cineclick www.cineclick.com.br
Descrição: Celso Sabadin
é o responsável pelo mesmo site que publica as colunas de
José Nêumanne (que elogiou Gente da Sicília)
e Carlos Reichenbach, que escreve semanalmente sobre o cinema da transgressão.
No caso do último, embora possua uma já numerosa obra que
transita por vários gêneros, desde produções
da Boca do Lixo até o recente Dois Córregos, é
identificado no índice de colunas como o "homem da voz grossa".
Sabadin nos informa em sua coluna de 21/08/2000: "Sou crítico
de cinema há 20 anos", e segue por dizer que mesmo com tamanha
experiência, não entende porque "bastou um filme ser
sucesso para a crítica sair malhando. E vice-versa: bastou um filme
ser extremamente aborrecido para a crítica endeusá-lo."
Cita como exemplo dois filmes recentes: o já citado Gente da
Sicília, e o brasileiro Estorvo, de Ruy Guerra. Sobre
o primeiro, para ser sucinto, ele diz: "Aquilo não é
um filme. É um amontoado de celulóide que deu errado",
e completa, taxativo, "daí à crítica elegê-lo
como o melhor filme da Mostra de cinema... êpa! Pera lá!
Alguma coisa tá muito errada!" Nos relata suas aventuras com
o filme, segundo as quais "Da primeira vez, abandonei a sala após
20 minutos de projeção." Corajoso, tenta uma segunda
vez, e conclui: "Nunca havia visto em toda a minha vida um filme
tão chato." Mas, é ainda mais interessante ver o que
ele pensa de Estorvo, pois isso nos leva a uma discussão
constante em seus textos desde então: os rumos do cinema brasileiro.
Sobre este filme, Sabadin é novamente veemente:" Estorvo é
absolutamente – para usar uma palavra bem popular – chato. Pentelho, aborrecido,
mal narrado." E segue com uma bem urdida teia de argumentos: "Em
relação ao filme, boa parte da crítica não
hesitou em recomendá-lo simplesmente porque ele é "incômodo".
Uai! E quem quer pagar 10 reais numa bilheteria para ser "incomodado"?
Desde quando "incômodo" passou a ser um elogio?"
Na sua coluna de 08/09, Sabadin dedica quase
todo o seu espaço a suas opiniões obre o cinema brasileiro.
É um argumento de tal forma bem engendrado e complexo, que seria
um crime reproduzi-lo apenas parcialmente, por isso peço a licença
de transcrever boa parte do texto:
"O filme de Andrucha prova – pela enésima
vez – que o público brasileiro gosta, sim, de ver filmes brasileiros
na tela grande. Mas tem que ser filme bom. Tem que ser filme que fale
a linguagem do público.
Que Júlio Bressane e Ruy Guerra me
perdoem, mas quem, hoje em dia, tem capacidade física e psíquica
para suportar, só para citar dois exemplos, filmes como São
Jerônimo e Estorvo? Nada contra as obras propriamente
ditas, e nem é minha intenção discutir aqui a importância
artística de cada uma delas. Mas, pragmaticamente falando, é
preciso deixar bem claro que existe um cinema para ser exibido nas grandes
e boas salas de exibição, e um cinema para ser exibido no
circuito restrito dos festivais, cinematecas e mostras especiais. E misturar
as bolas é profundamente prejudicial à saúde do cinema
brasileiro.
Vamos supor que um casal desavisado resolva
sair de casa, sábado à noite, para ir ao cinema. Munido
do mais profundo senso patriótico, este casal resolve - finalmente
– deixar de lado o preconceito e ver um filme brasileiro. "Vamos tentar,
querida, afinal estes críticos andam falando tanto que o cinema
brasileiro melhorou. Vamos conferir", diz o sujeito, todo orgulhoso de
si. Arrumados e cheirosos, eles pagam 10 reais cada um e entram no cinema
que está exibindo Estorvo (eu falei que o casal era desavisado...).
Pronto. Acabou! Aí estão duas pessoas que jamais voltarão
a ver um filme brasileiro. Duas almas perdidas no nosso cinema. No final
do filme (se é que eles conseguiram chegar no final), ela diz pra
ele: "Eu não te falei que estes críticos são uns
pentelhos? Cinema brasileiro, nunca mais!".
E quem há de dizer que o casal não
tem razão? O único ponto positivo é que, pelo menos,
eles economizaram o dinheiro da pizza, porque não há estômago
que resista a Estorvo.
Tem muita gente que prega que o filme brasileiro
não pode se preocupar com mercado. Que o nosso cinema tem de ser
criativo, revolucionário, experimental e até seguir a chamada
"estética da fome". Concordo com todo e qualquer cineasta que diz
isso... e que pode fazer seu filme pagando do próprio bolso. Aí
tudo bem! Cada um faz o filme que quiser com o seu dinheiro. Mas segundo
o cineasta Sérgio Rezende declarou a este jornalista, durante o
Festival de Gramado, utilizar verba pública para fazer filmes pessoais
é corrupção. Tá certo! Se o dinheiro é
do povo, o filme deve, sim, visar o mercado. Mesmo porque o cineasta tem
de sobreviver. Ele precisa fazer dinheiro para o seu próximo filme,
e assim por diante, gerando mais filmes, mais trabalho e mais empregos
para toda a atividade cinematográfica brasileira." E encerra
com força: "Nosso público adora ver um bom filme brasileiro
nas telas."
Dois meses depois, em 06/11/2000, uma visão
complementa o pensamento do nosso teórico: "O Brasil é
um país cheio de lendas. Fora aquelas conhecidas, do Saci, Curupira,
etc., existem outras lendas de cunho social que povoam a nossa terra.
Por exemplo: "O Brasil é um país muito musical".
Mentira. Quem vende milhões e milhões de discos de pagode
e pseudo-sertanejo não pode ser adjetivado como "musical".
(...)
Começaram a justificar a baixa qualidade
dos nossos programas de televisão pela alta audiência que
eles obtinham. "Ratinho, Faustão, Gugu, Luciano Huck, Feiticeira,
é tudo porcaria, mas é isso mesmo que o povo quer ver",
dizem. E pior: tem gente querendo levar este raciocínio para o
cinema.
Peralá! Não é bem assim, não. O povão
que chega em casa massacrado após um dia de serviço assiste
a estas coisas por falta de opção. E para os empresários
de TV é mais fácil e mais barato mostrar bunda de assistente
de pagodeiro do que quebrar a cabeça para criar atrações
ao mesmo tempo populares e de qualidade. Assim, fica mais fácil
e mais barato vender a idéia de que "é disso que o
povo gosta".
Só que o cinema está aí, provando com números
que esta lenda precisa ser derrubada. Qual é a maior bilheteria
nacional deste ano? O Auto da Compadecida, filme simplesmente recheado
de qualidades. Seja de texto, de edição, produção,
interpretação, seja lá do que for. Outro filme bom
que fez sucesso: Eu, Tu, Eles, com mais de 700 mil ingressos vendidos.
Claro que drogas como Xuxa Requebra também foram bem de
bilheteria, mas isso é apenas reflexo de um mercado que engoliu
porcaria durante muito tempo.(...)
Nada contra o popular. Nada contra a participação
no cinema de grupos musicais que o povão curte. Nada contra nada
disso. Mas – calma aí – precisa menosprezar desta forma a inteligência
da platéia brasileira?
O povo gosta, sim, de coisa boa, mas é
preciso que ele tenha a opção de escolher. É precisa
dar à população acesso cada vez maior às obras
de qualidade como Eu, Tu, Eles, O Auto da Compadecida e outras
que certamente virão.
Assim, a qualidade virá. E o público
novamente fará filas nas portas dos cinemas pra ver filmes brasileiros.
Filmes populares... mas com qualidade. Por que não ?"
Diagnóstico: É claro
que um caso complexo e extenso como este não pode ter um diagnóstico
simplório, pois trata-se de uma psicose múltipla. Primeiro,
a esquizofrenia: a cada texto, Sabadin renega ou confunde o seu anterior.
Afirma que Estorvo ser considerado bom pela crítica num
festival de cinema é absurdo, e em seguida diz ser um filme para
"festivais". Reclama que o filme é "pentelho",
para em seguida dizer que não discutirá os méritos
artísticos do mesmo. Diz que o público assistirá
sempre os bons filmes, mas em seguida afirma que se vê uma porcaria
como Xuxa Requebra é porque é forçado a isso.
Mas a esquizofrenia é o menor dos
seus pecados. Ele também sofre de um masoquismo perene. Detesta
os críticos e a distância que estes têm do público,
mas contrata para escrever no seu site dois colunistas que adoraram o
"amontoado de celulóide que deu errado" chamado Gente
da Sicília. No mínimo, seguindo seus critérios,
ele contratou pessoas que julga incompetentes no seu trabalho: analisar
e julgar uma obra cinematográfica. Não possuem sensibilidade,
estão "errados".
Mas o masoquismo é lá um problema
dele. O principal diagnóstico aqui, que serve como alerta a todos
os outros, é de um latente fascismo. Não tenho a menor dúvida
que Sabadin tem a melhor das intenções, mas este é
o fascista mais perigoso. Atentemos para seus argumentos: ele afirma saber
o que é bom para o povo. Diz que filmes como Estorvo não
devem ser exibidos pelo risco que são à cultura nacional.
Diz mais: que filmes como Xuxa Requebra também não
devem ser aceitos como fenômeno popular, pois o "povo não
sabe o que faz". Ele sabe o que é melhor para o povo. O que
Sabadin propõe é a ditadura do gosto comum, assistamos apenas
as obras agradáveis, que reafirmem de preferência os mesmos
valores que já conhecemos. Nem a alta intelectualidade, nem o popularesco:
precisamos fazer filmes bons, de qualidade. Mas, bons segundo quem, cara
pálida? Porque a sua opinião pessoal deve balizar a produção
de um país? Porque no caso de Estorvo você se coloca
ao lado do povo, acima dos críticos. No de Xuxa Requebra,
ao lado dos críticos, acima do povo. Em suma, você é
o supra-sumo da brasilidade, o gênio da raça, aquele que
deve ser seguido. Fascista? Não, imagina...
Mas, Sabadin tem propostas mais profundas,
de ação política. Segundo ele, "se o dinheiro
é do povo, o filme deve buscar o mercado". O que é
isso, malandragem? O povo paga os filmes e o lucro vai para os produtores?
Se estes "bons filmes" têm sucesso garantido, porque o
povo precisa pagar duas vezes para vê-los (nos impostos e na bilheteria)?
Se o dinheiro do povo deve sempre buscar o mercado, danou-se, fechamos
os hospitais, escolas, reforma agrária. E, claro, a produção
cultural. Afinal, segundo Sabadin, ninguém gosta de ser "incomodado"
quando vai ao cinema. De preferência, ficamos todos nada incomodados,
do alto do nosso "gosto comum", vendo filmes de "boa qualidade"
e educando o nosso povo... Mas, de longe, porque a miséria deste
mesmo povo é uma coisa meio "incômoda", e é
ruim ser incomodado. É ruim ser desafiado, é ruim ser levado
a pensar. Pois, afinal, se pensarmos muito, acabamos enxergando muito
fácil o arsenal de besteiras que um crítico como Sabadin
nos oferece. E mais, enxergamos claramente o fascismo por trás
de seu "gosto comum", o autoritarismo atrás do seu discurso
"pelo bem do povo e do cinema brasileiro".
A melhor frase dos textos de Sabadin, eu
deixei para o final, pois parece um singelo mea culpa inconsciente.
Diz ele, sobre o filme da Xuxa: "E a Tizuka Yamasaki – tadinha –
não teve nem o bom senso de pedir para os produtores para não
assinar o filme. Tudo bem, todo mundo erra, faz bobagem, mas não
precisa ficar assinando." E você, Sabadin, não assina
sua própria coluna?? Mas, a mentalidade é essa mesma: o
problema que Sabadin enxerga não é de uma diretora como
Tizuka aceitar o dinheiro para fazer uma obra "prejudicial"
ao público. Não está aí a ética do
mercado. É que, pelo menos, faça isso escondido...
Sabe, gente, agora bem sério, o que
incomoda mesmo em todos estes casos é o desrespeito à opinião
alheia. A todos estes supostos "críticos" não
basta falar mal dos filmes que eles não gostam. Eles precisam desqualificar
toda opinião em contrário. São autoritários
antes de mais nada. E, no fundo, não são críticos,
pois nunca conseguem discutir mesmo a obra em si, não apresentam
nenhum olhar novo que o espectador não possa já ter tido.
Não engrandecem em nada os filmes, o leitor, ninguém. Não
possuem, portanto, função social alguma. Não merecem
o título, e, diagnóstico final, se há uma falência
hoje na crítica é o simples fato de estes moços poderem
se considerar como tais.
Eduardo Valente
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