Curta Cinema Panorama Internacional
Ao alcançar seu décimo
ano , o sexto com uma mostra internacional, a Mostra Curta Cinema alcançou
seu maior número de filmes exibidos, em duas salas, no CCBB e no
Espaço Unibanco. Os cariocas tiveram a sua disposição,
durante 10 dias, alguns dos melhores curtas produzidos no mundo hoje,
o que além de ser uma raridade por si só, é uma oportunidade
ainda mais especial por sabermos que os curtas são, muitas vezes,
responsáveis pela produção mais ousada e interessante
de cinema. Na Curta Cinema, o painel é especialmente amplo, pois
ela inclui desde sessões voltadas para filmes de escola, até
filmes de grandes diretores. O formato do curta metragem é um dos
maiores desafios para um cineasta, pois sua curta duração
pede, ao mesmo tempo, um grande poder de síntese e uma capacidade
de atração imediata ao assunto. Caso não haja o primeiro,
os filmes parecem surpreendentemente chatos, mesmo em sua curta duração.
Caso não haja o segundo, eles nunca parecem ser mais que a introdução
a algo.
Antes de começarmos a
analisar a produção apresentada em si, um comentário
precisa ser feito. Apesar de tudo dito acima, parece que o público
carioca não sabe apreciar ainda o valor desta oportunidade. As
sessões internacionais, de uma forma geral, estiveram com público
bem aquém do esperado, seja no Espaço Unibanco, seja no
CCBB. Os motivos para isso são complexos, mas podemos arriscar
alguns, cada um por conta de uma parte diferente do jogo que é
a exibição de uma mostra. Na parte da mídia, a cobertura
da Curta Cinema é apenas mais uma prova da preguiça mental
da imprensa cultural carioca. Enquanto em São Paulo o Festival
de Curtas recebe uma cobertura quase diária, no Rio a Curta Cinema
recebe uma matéria introdutória apenas, que é pouco
mais que um release (mal) comentado. Na parte de público, ele demostra
uma extrema falta de ousadia, apostando apenas nos medalhões conhecidos,
não se dispondo a arriscar quase nunca. Na parte dos organizadores,
é verdade que a divisão por "temas", embora interessante
a nível de curadoria, causa uma certa confusão no público
que encontra dificuldades em optar por uma ou outra sessão. Também
o preço do ingresso no Espaço Unibanco não ajudou,
pois em São Paulo boa parte da tradição do Festival
de lá se deve à sua gratuidade, que formou de fato um público
específico do curta metragem. Há inúmeras pessoas
que se colocam contra isso, dizendo que as pessoas precisam pagar para
ver curtas, como pagam para ver longas. Mas, este é um direito
a ser adquirido, não imposto. Culpar o público por um sistema
onde ao longa é atribuído o valor de "filme" (na
frase "vamos ver um filme"), é como querer se rebelar
contra a lei da gravidade. Há de requerer uma resistência
mais inteligência, trabalhosa mesmo, até inventar o avião.
Acima de tudo é uma pena ver o público perder a chance de
ver alguns dos mais belos filmes exibidos no Rio em 2000, por todos estes
aspectos acima, e mais alguns.
Para analisar os filmes, é
impossível não começar pela sessão Grandes
Diretores em Pequenas Doses, uma sacada brilhante dos organizadores, que
completou 4 anos de sucesso em 2000. Mas, como todo sucesso é relativo,
é verdade que o destaque dado a esta sessão acaba sendo
um pouco em detrimento das outras. No cardápio deste ano, curtas
de Tim Burton, Peter Jackson, Hal Hartley e Todd Haynes. Deles todos,
o melhor talvez fosse o de Haynes, Dottie Gets Spanked, um filme
de um realizador completo, maduro, sutil, com um cuidado visual equivalente
à doçura da sua realização, ao falar das dificuldades
de adequação de um garotinho. Mas, se este era o melhor,
não se pode dizer que os filmes de Burton ficassem muito atrás.
Ambos completamente inseridos na obra de Burton, Vincent é
uma sucinta reflexão sobre a infância e a imaginação,
enquanto Frankenweenie pega um viés mais "divertido",
mas não menos simpático ao lado marginal e feio da vida,
que é a marca de Burton. O filme de Jackson apresenta uma das marcas
da Curta Cinema deste ano: uma duração excessivamente longa.
Houve um grande número de filmes entre 35 e 60 minutos este ano,
o que não chega a caracterizar mais um curta. No caso de Forgotten
Silver, de Jackson, um interessante jogo de verdade e mentira sobre
a relação do cinema com a própria História
do século XX, a duração não chega a se justificar,
a não ser que para exibição em TV. O filme acaba
se esticando mais do que devia. E, finalmente, o trabalho de Hal Hartley
foi mostrado em 3 filmes que resumem tudo que ele tem de melhor e de pior.
Em Ambition, mas especialmente em Theory of Achievement
vimos todo o mal que a obra de Jean-Luc Godard fez a este jovem americano,
obcecado em homenageá-lo, repeti-lo, copiá-lo, a um ponto
de completo vazio e irritação. Já em Surviving
Desire, paradoxalmente o mais longo dos 3 (com 60 minutos, praticamente
um longa), Hartley controla seu cinema e volta ao estilo de seu melhor
filme, Confiança, comentando as relações humanas
e usando Godard como um modelo e não como uma obsessão.
O filme funciona bastante, e foi uma boa oportunidade de vê-lo.
A outra sessão que já
está se tornando tradicional na Mostra nos leva ao outro espectro
da produção, a das escolas de cinema. A Cinefondation, formada
pela seleção de filmes a partir de uma sessão especial
do Festival de Cannes também cria uma ponte com este festival,
o que garante sempre, se não a qualidade, a relevância do
retrato do que se produz nas escolas de cinema do mundo. É importantíssimo
ficar atento à esta sessão, porque ela indica caminhos futuros
do cinema mundial, assim como o pensamento e estilo das escolas do mundo.
Na seleção deste ano, não veio o grande vencedor,
por problemas de cópias disponíveis. Entre os premiados,
interessantemente, os terceiros prêmios superavam em muito os segundos.
Os dois melhores filmes das sessões eram justamente os terceiros
prêmios, o dinamarquês India e o vietnamita Corrida
Noturna. Ambos surpreendem mais do que por sua excelência técnica
(com câmera, iluminação e som impressionantes), pela
sua coragem temática, tocando com delicadeza na história
de jovens sem rumo. Os segundos prêmios eram um singelo e bem humorado
filme americano sem maiores atrativos, Kiss it up to God, e o amargo
filme israelense Sobremesa, que até poderia surpreender
se não fosse uma quase cópia de algo que já vimos,
o curta Bolo, de José Roberto Torero. Chega a ser caso de
perguntar se não houve plágio de fato, de tão parecidos.
Havia ainda o filme brasileiro De Janela pro Cinema, simpático,
mas já batido (e diga-se de passagem, não é um filme
de escola); o polonês Ascenção, que mistura
Emir Kusturica com a tradição do cinema russo/lituano de
Sharunas Bartas e outros, não chegando a adicionar nada de novo,
mas bastante bem realizado; e dois quase longas, o português Respirar
(Debaixo DīÁgua) e o russo Não Perca o Assassino,
ambos excessivamente longos, sem maiores razões, embora sigam caminhos
completamente diferentes, o primeiro refletindo sobre a juventude e seus
descaminhos enquanto o segundo cria um quebra-cabeças de inspiração
formal e quase surrealista, que não chega a montar. Mas, impressiona
as ambições de todos os filmes, mesmo os não bem
sucedidos, de serem algo mais que meros exercícios.
Entre as outras sessões
especiais, tivemos as Infantis, as quais não pudemos acompanhar
na totalidade, mas apresentaram alguns filmes surpreendentemente complexos,
como a belíssima animação holandesa Música
para uma Coruja, que deve ter deixado muito adulto confuso. Tivemos
ainda a sessão Curta nas Salas, que exibiu juntos uma série
de curtas que, durante a semana da Mostra, ficaram abrindo, um por sala,
as sessões nas salas do circuito Estação. Certamente
uma ótima idéia dos organizadores para dar mais ar e espaço
para seus filmes, e visibilidade aos curtas. Todos os filmes eram sem
diálogos, o que havia sido idealizado para evitar a necessidade
de legendas, mas que quando exibidos coletivamente causa uma agradável
observação de filmes que tentam se comunicar somente com
imagens e sons. Entre eles, destaque para o trabalho visual estupendo
do russo Sergei Ovcharov, algo de realmente novo no trabalho com animação
em live action, se adaptando aos formato do que mostrava. Houve dois curtas
seus exibidos, sendo que Faraó foi feito em visual semelhante
aos hieróglifos, e Os Trabalhos de Hércules como
pinturas gregas. Uma vez passado o encantamento do visual, fica um humor
levemente doentio, mas ele ainda não conseguiu solucionar melhor
suas narrativas. Dos outros filmes, destaque-se a animação
belga Bzz, um pequeno ensaio sobre obsessão e traumas, com
grande humor e um final verdadeiramente bizarro; o estranho alerta contra
guerra do francês Amarelinha, que deve ter intrigado e incomodado
muitos espectadores; e o agradável jogo de armar da animação
suíça Replay.
Houve ainda uma extensa (4 sessões)
retrospectiva do curta alemão dos anos 90 promovida pelo Instituto
Goethe. Infelizmente as cópias em 16mm não eram exatamente
ótimas, assim como a legendagem em espanhol. Foram as mais vazias
sessões (pelo menos no Unibanco), mas escondiam alguns bons filmes,
em especial o fantástico "A Torrente", um dos melhores
filmes de toda a Mostra. Havia ainda interessantes documentários
como Heilt Hitler! e Em um Lugar e ficções
muito bem sucedidas, em especial o não-apologético nem moralizante
retrato de juventude perdida Pas de Deux. A sessão de animação
era composta quase totalmente por filmes já vistos no Anima Mundi,
e alguns dos outros curtas também, na própria Mostra ou
em SP, como os bons Chainsmoker e Uma Simples Tarefa. No
geral, o panorama não chega a empolgar (especialmente se compõe
o melhor da produção alemã), mas não chega
a ser o desastre que a produção alemã de longas na
década de 90 apresentou.
A última sessão
especial era formada por curtas ingleses de um consórcio de produtoras
e distribuidoras, chamada de Shorcuts. Embora a sessão como
um todo fosse fraca, havia dois filmes razoavelmente interessantes, Perdie
e The Great Indoors, ambos aliás realizados em vídeo;
um filme muito bom, com um trabalho visual que se adequa a sua temática
forte, Preserve; e aquele que foi possivelmente o melhor filme
de toda a Mostra, The Pool. Este último utiliza o vídeo
para a poesia e não para o já clichê documentário
caseiro, e consegue passar toda a agonia dos traumas e medos da infância
a partir de uma criança que tem medo de nadar. Seu ponto de vista
é sempre o desta criança, numa narrativa estruturalmente
livre e de grande poder de alusão, especialmente na banda sonora.
The Pool é talvez o melhor exemplo do poder de um bom curta.
Para não sermos completamente
entediantes e exaustivos, vamos falar das sessões do chamado Panorama
Internacional coletivamente, ao contrário do que fizemos com estas
sessões especiais. O Panorama representa um interessante esforço
de curadoria por parte dos organizadores em criar sessões temáticas.
Algumas vezes, elas não chegam a se completar, em outros o conceito
fecha perfeitamente. Uma das mais bem sucedidas (até por ser das
poucas reconhecível pelo título, algo a se pensar com mais
calma talvez) dos últimos anos, a Mundo Bizarro, por exemplo, este
ano não funcionou. Na prática, quase nenhum dos seus filmes
era verdadeiramente bizarro, alguns eram piadas exageradas, outros simpáticos
contos, outros ainda exercícios de estilo vazios. Não por
acaso, o único filme bizarro mesmo era o destaque da sessão,
o estoniano (ah, estes soviéticos...) Carona Numa Estrela,
uma aula de clima, estranheza e inconclusão. O alemão Contando
Ovelhas tinha toques inteligentes, mas não chegava a ser bizarro
nem genial. O resto da sessão era fraca.
Outras sessões, por outro
lado, funcionaram às mil maravilhas, principalmente a Ritos de
Passagem, que a exceção do primeiro filme, o simpático
mas excessivamente ingênuo e longo finlandês Garoto da
Lapônia, só apresentou filmes bons, e com estilos variados
dentro do tema, outra coisa importante no futuro da Mostra. Havia o contundente
ensaio audiovisual A Face do Tempo, o estupendo mergulho na tradição
africana Baobá, o verdadeiro e humano filme gay (uma raridade
no "gênero") O Rei da Montanha, e finalmente o
simples e por isso mesmo profundo Com Marinete. Uma ótima
sessão, coletivamente a melhor da Mostra. Para exemplificar a necessidade
da variação de estilo, a sessão Em Terras Estrangeiras
caiu na armadilha de programar uma série de bons filmes (com exceção
do fraquíssimo Merci Beacoup, Madame Iracema!), mas todos
batendo na mesma tecla e formato. É um tema sem dúvida relevante,
um dos mais relevantes no mundo hoje, mas talvez o excesso de filmes franceses
(aliás, um problema da Mostra como um todo) tenha feito com que
todos se parecessem e a sessão ficasse cansativa (embora o mais
curto, O Táxi, resultasse o melhor deles).
Uma grande decepção,
certamente, foi a sessão Premiados, outra que parece trazer uma
chancela de qualidade, mas que neste ano trouxe apenas filme verdadeiramente
interessante, o bizarro estudo finlandês do conflito de gerações
Uma Pedra por Remover (aliás, os premiados em Tampere sempre
são os mais bizarros e fascinantes). De resto a sessão teve
o bom Salam, mas que cabia perfeitamente na Em Terras Estrangeiras
sem adicionar maior qualidade, e todos os outros eram fracos, especialmente
o longuíssimo choramingo masturbatório Belo Como um Caminhão,
que parece um verdadeiro alerta sobre os perigos da produção
digital em mãos sem talento.
As outras sessões (Nosso
Mundo, Midnight Shorts, A Vida é Assim) possuem um perfil aberto
o suficiente para receber quase qualquer filme. Isso é tanto desejável
como problemático, para público e seleção.
Nelas todas, poucos destaques. Na Midnight Shorts 2, um ótimo filme,
Lost Weekend, que forma com India um senhor cartão
de visitas da escola de cinema dinamarquesa, e mais dois filmes muito
bons, ambos aliás de escola, o alemão Sportfrei,
um baratíssimo ensaio sobre a decadência e o abandono; e
o russo Letīs Fly, absolutamente charmoso e delicioso. Havia ainda
uma boa idéia que não se sustenta mesmo em sua curta duração,
Extremism Breaks My Balls. Na sessão A Vida é Assim,
o filme-complemento do maravilhoso The Pool, levemente inferior
mas com certeza um dos melhores da Mostra o também inglês,
também sobre as dificuldades de ser criança e ser diferente,
Better or Worse?. Havia ainda um outro bonito olhar de criança
(aliás o universo infantil sobre crianças e não
para elas- já está pedindo uma sessão temática
no ano que vem, pela sua recorrência), Speed of Light, mas
o resto da sessão era irregular. O curta se presta muito ao olhar
infantil pela possibilidade de não ser tão lógico-narrativo
como os longas em geral pedem, por isso talvez o grande número
de tentativas impressionistas de retomar este olhar infantil.
Finalmente, entre as sessões
Nosso Mundo, a primeira delas era a segunda melhor sessão da Mostra,
extremamente regular, apenas formada de bons filmes, embora a idéia
de "nosso mundo" fique bastante esparsa. São todos bons
filmes, mas é importante destacar o filme mais bizarro da Mostra
(embora sua inserção aqui e não no Mundo Bizarro
tenha interessantes implicações da curadoria, que comprovam
um perfeito entendimento da proposta do filme), o inglês Intolerância,
que dava o tom da sessão como um todo, que parecia pedir um título
menos genérico, algo como "Pela tolerância", ou
para ser bem Rock in Rio, "Por um Mundo Melhor", ou "Ser
Humano é..." Todos lidavam com o tema, e traçavam muito
mais este painel do que um olhar global. Destaque-se ainda o irlandês
Between Dreams e o filme de Montenegro O Primeiro e o Último.
A sessão Nosso Mundo 2 era mais global, justificando o título,
mas ainda assim, não totalmente. Irregular, nela apenas o francês
Um Pequeno Ar de Festa se destacava mais.
Bom, ao final deste passeio
maravilhoso, resta a sensação sem preço de ter conhecido
algo mais, não só do cinema do mundo, mas do mundo e do
ser humano, ao mesmo tempo. Este sentido quase humanista de se realizar
uma Mostra como estas é que se lamenta perder com o pouco público,
e principalmente pouca discussão. A entrada do digital nos curtas;
o grande número de filmes que buscam apenas "retratar"
o cotidiano sem início ou fim; as linguagens variadas do documentário;
o olhar infantil; os temas recorrentes; em suma, cada um destes valia
pelo menos uma matéria, um olhar, um estudo, um debate. Quando
ao fim de uma Mostra como esta isso não ocorre é inevitável
a frustração, um certo vazio, que lembra o do Festival do
Rio um pouco. Sim, eu vi todos estes filmes, mas e daí, se só
eu e poucos outros filmes? Sim, estes filmes foram exibidos, mas será
que foram vistos e apreendidos? O que ficou deles? São perguntas
importantes, que mais do que desencorajar, devem balizar os esforços
de quem produz o evento, para fazê-lo cada vez melhor, e não
apenas maior. Este parece ser o desafio do milênio que vem de todos
os nossos festivais. Cinema não é só a melhor diversão,
afinal...
Eduardo Valente
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