Afinal, para que serve o crítico?

A pergunta central desta pauta
de Contracampo é uma pergunta que está no auge de sua urgência
no pensamento cultural e artístico brasileiro. Seguidos eventos
vêm comprovando isso. Só em Sâo Paulo, em 1999 o Itaú
Cultural realizou um ciclo de palestras chamado Rumos da Crítica,
e em 2000 a APCA (Associação Paulista dos Críticos
de Arte) promoveu uma série de encontros denominada A Crítica
da Crítica, justamente colocando críticos e artistas
frente a frente. Em sua edição de 3 de dezembro, o Caderno
2 do estado de S. Paulo (possivelmente o principal suplemento cultural
da grande mídia brasileira) estampou a manchete: A Crise da
Crítica, e permitiu que um crítico de cada área
tentasse definir o seu papel no painel cultural. Há ainda livros
como o de Leyla Perrone-Moisés, intitulado A Falência
da Crítica.
Os motivos de tantos questionamentos são
inúmeros, e na maioria até razoavelmente óbvios.
O principal é mesmo o processo que levou a cultura a se transformar
lenta e inexoravelmente numa indústria, através da qual
obras viram mercadorias e o público, consumidores. Na chamada indústria
cultural, a primeira palavra da expressão certamente parece estar
se impondo à segunda. O mesmo se deu com a imprensa. Nossos jornais
e revistas são cada vez mais superficiais, rápidos, despretensiosos.
À crítica se sobre põe o jornalismo cultural. Com
isso, onde está sequer o espaço para que existam os críticos.
O problema da formação também é central, os
críticos parecem a cada dia mais mal informados, mal preparados,
e acima de tudo, incapazes do pensamento criativo, repetindo ad eternum
os mesmos conceitos já mastigados.
Todos estes processos levam à uma
pergunta que me parece central na discussão, mas que mesmo assim
poucos parecem dispostos a fazer: mas, afinal, qual o papel do crítico?
O que significa exatamente esta palavra? Centrando a discussão
no cinema, aparentemente hoje ela tem múltiplos significados. Se
formos ver pelos nossos principais periódicos de Rio e São
Paulo(e aqui nos limitamos a estes, por serem aos quais temos maior e
constante acesso: O Globo, Jornal do Brasil, O Dia, Folha de S. Paulo,
Jornal da Tarde – propositalmente não incluiremos o Estadão
aqui), parece que o crítico é apenas um espectador que viu
o filme antes, que teve acesso a press releases. Sua função
é informar objetivamente o leitor. Quais são os atores,
qual o diretor, o que eles fizeram antes, eles estão bem? Este
é um exemplo típico de mau uso da palavra "crítico".
O que se faz nestes jornais, como em várias revistas (SET
sendo o principal exemplo) é jornalismo cultural. Não requer
formação, não requer estilo, não requer sequer
posicionamento perante o material. Portanto, não pode ser chamado
de crítica. Nos seus casos mais extremos, demonstra um conhecimento
puramente enciclopédico do cinema, mas não almeja mais nada
que o "informar". Em seguida, podemos ver o que a TV considera
um "crítico". Na TV, com a rapidez pedida pela informação,
o crítico aparece como um direcionador: "este filme é
bom, merece sua atenção, etc". No antigo programa Cinemania
na TV Manchete tínhamos as sessões com sequências
favoritas, lançamentos, etc. Ou seja, mais um mau uso da palavra
crítico. Este é um animador cultural, um programados muitas
vezes, mas jamais um crítico. Finalmente não é incomum
ver o crítico como enviado a um grande evento (um Festival por
exemplo), onde ele deve tentar ver 40 filmes em 10 dias, fazer entrevistas,
publicar releases, fofocas, tudo ao mesmo tempo. O espaço dado
a estas coberturas geralmente impede qualquer reflexão sobre este
processo, apenas informação e alguma "malandragem"
para prever premiações, etc. Mais uma vez, este não
é o papel do crítico. É o do correspondente, do repórter.
Ou seja, no fim das contas estamos chamando de críticos os jornalistas
culturais, animadores, programadores, repórteres.
E, afinal, o que eu proponho que seja o autêntico
crítico? Este deve ser, por paradoxal que pareça, um artista.
Sim, antes se confundir as fronteiras entre crítica e arte do que
entre crítica e jornalismo. O crítico ideal é aquele
que faz da obra de uma outra pessoa a matéria prima da sua própria
criação artística. Que está, é verdade,
muito ligada à criação literária, mas não
somente a ela. O bom crítico é aquele que cria uma segunda
obra, que dialoga com a primeira. O crítico deve pegar uma obra,
colocá-la frente a frente com sua bagagem de conhecimentos sobre
aquela área do saber (e de preferência, muitas outras áreas),
e mais, frente a frente com sua experiência de vida, e a partir
daí criar uma segunda forma de arte, que deriva sim da primeira,
mas que deve ter vida própria. Uma boa crítica é
como uma segunda ficção a partir daquela comentada. Ficção
necessariamente comparativa, é verdade. Costuma-se dizer que o
crítico "erra" quando enxerga um viés na obra
de um artista que este próprio não havia visto. É
uma piada corrente contra os críticos. Mas é uma piada boba,
infantil. Pois o bom crítico consegue ligar aquela obra a tantas
outras da mesma arte e da vida, buscar comparações as mais
inesperadas, que é apenas natural e desejável que ele, a
partir do seu olhar pessoal, crie significados que não existiam
previamente. Em crítica não pode existir "erro",
apenas falta de formação. Até porque o processo de
criação artística é muito mais misterioso
do que se supõe, e permite muitas dobras e estiramentos. O crítico
não comenta, ele incrementa. Ele não deve "achar",
ele vê. Uma boa crítica, quando lida, reprisa o prazer de
uma obra, aumenta, dá novos horizontes, eleva. Pode, inclusive,
provocar tanto prazer e descoberta no leitor quanto uma obra de arte original,
única. Não nos parece que quase nada do que se faz hoje
com o nome de "crítica" tenha esse poder. Por isso, insisto,
é até bobo falar da falência da crítica, pois
ela não é mais sequer realizada na grande mídia.
Estão usando seu nome em vão. O principal problema não
é nem só o fato, mas a continuidade da utilização
da expressão apenas pelo verniz intelectual que ele traz.
É claro que é complexa a atual
estrutura que apresenta a premência da informação
"fast food" na grande mídia. Isto, afinal, está
longe de ser um fenômeno isolado à área da cultura,
no que diz respeito à disposição para a reflexão.
O que incomoda no processo é que ele sufocou completamente qualquer
outra possibilidade, mais ambiciosa, mais de acordo com o que seja a palavra
"crítica". Hoje, a Folha de S. Paulo tem um caderno semanal
de "excelência", o Mais, onde se refugiam os textos reflexivos,
escondidos e guetizados. O jornal O Globo e o Jornal do Brasil nem isso.
Publicam cadernos de lançamentos literários, mas tão
somente porque eles praticamente se pagam pelos anúncios das editoras.
De resto, seus cadernos culturais repetem exaustivamente os mesmos releases,
muitas vezes no mesmo dia, e nos cadernos de sexta feira voltados para
os eventos culturais, dedicam dois ou três ínfimos parágrafos
(para ser justo, na Folha um pouco mais) a algo que ainda têm a
coragem de chamar de crítica. No caso do Estado, temos destacado
o seu Caderno 2, pois este continua a ter muito espaço reflexivo
em suas matérias que muito pouco parecem copiar dos releases, e
possui ainda duas edições semanais (sábado e domingo)
voltadas a discussões mais longas. Isso tudo pode fazer crer que
a crítica é puramente um problema de espaço. Não
deixa de ser, pois realmente até no chamado "jornalismo cultural",
chega a ser ridícula a diferença de espaço entre
texto e figuras nos jornais cariocas e na Folha em relação
ao Estado de S. Paulo.
Mas, acima de tudo, a crítica precisa
de uma postura editorial, e isso é o assunto mais sério.
O crítico não informa, ele forma. Ele não é
jornalista, nem é repórter, pois seu saber não busca
uma existência momentânea efêmera, mas sim a permanência.
Seu trabalho dialoga com a obra, não apenas recebe dela o que vai
ser escrito. Acima disso tudo, seu escrito pressupõe criatividade,
a possibilidade de produzir pensamento, e não apenas reproduzir.
Neste ponto pode estar a principal razão da falência da crítica.
Na oposição das noções de produzir e reproduzir.
Colocado dentro da indústria cultural, o crítico perde seu
habitat natural, pois ele não visa primariamente o consumo, mas
a reflexão, a pesquisa, a investigação. Ele quer
incentivar o público a se demorar, a se deliciar no consumo de
uma obra artística, quando este próprio público parece
estar, em sua maioria, interessado em rapidez, velocidade, excesso de
informação, e falta de formação.
Não por acaso, em plena era da Internet,
e dentro dela própria, quem diria, a Contracampo é, com
o perdão do trocadilho, considerada um "contra-senso".
Diz-se que tem texto demais. Que o leitor não tem tempo a perder.
Pois bem, acreditamos que cabe a nós impor o que nós queremos,
não apenas nos dobrarmos a noções pré-fabricadas
de almanaque. Sabemos que há leitores e leitores, e que é
mais fácil tentar algo já consagrado, mas se não
fizéssemos nós mesmos o que acreditamos, estaríamos
dando razão à mediocridade dos editores que se dizem "bem
intencionados", mas impossibilitados de tentar algo de novo. Às
barricadas!
Eduardo Valente
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