Brasil Ano 2000:
Um País Curto de Idéias

 


O Velho, O Mar e o Lago, de Camilo Cavalcanti

Por que tinha que ser logo neste ano? Justo quando o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, maior evento do gênero na América Latina, retoma a tradição de exibir TODA a produção brasileira no formato, chegando a 110 títulos? No ano em que a Curta Cinema, segundo maior evento do país, reforça seu crescimento e chega à décima edição, também exibindo mais curtas nacionais do que nunca? Quando no Festival de SP realiza-se um raro debate sobre estética e caminhos do curta? Essas coisas não se explicam, mas o fato é que justo neste ano de 2000 tivemos a safra mais fraca do curta nacional em muitos e muitos anos. Pensando bem, as coisas se explicam sim. Basta olhar este ano como o ápice da ditadura do "concurso de roteiro" como maior incentivador de filmes. Basta pensar nele como o ponto final de uma longa trajetória de uma década nas escolas de cinema onde a produção foi cada vez mais se adequando a um formato de "provar que pode fazer um filme". Basta ver que foi mais um ano em que as pessoas filmavam curtas por não poder filmar longas, ao invés de filmá-los porque realmente os sentiam. Em suma, podemos passar um texto inteiro pensando nos motivos, mas isso fica para uma próxima ocasião. Aqui, importa é o balanço.

Em São Paulo saímos com este gosto amargo, que levou muitos inclusive a questionar o inquestionável: a decisão de voltar a passar todos os filmes, algo vital que aconteça em pelo menos um festival do país. Mas, havia a esperança de que a safra de fim de ano redimisse a do meio. Não foi o caso. Em que se registre o fato de que o grande vencedor de Brasília em todas as categorias, o filme Sinistro de René Sampaio, é a única, e talvez importante, ausência entre os filmes a serem vistos deste ano. Mas, ainda que seja uma obra-prima, não resolve um ano como um todo. E, em termos de curta metragem, é necessário se fazer balanços anuais, pois em doze meses realizamos o equivalente a quase cinco anos de produção de longas, em números absolutos. Geralmente os curtas seguem uma lógica comum aos longas, ou mesmo à produção de filmes em qualquer parte do mundo. Alguns, muito ruins, muitos regulares, alguns interessantes. Mas, na maioria dos anos, se consegue tirar um punhado de 5 a 10 que realmente ficam para o futuro, que são lembrados sempre que se faz uma retrospectiva do formato, ou mesmo dos filmes brasileiros de um período. O fato é que, embora nas outras categorias, a média continue a mesma, é nesta última que estão as ausências.

De fato, nos parece que apenas dois curtas de 2000 terão vida futura na memória das pessoas: aquele que é disparado o melhor do ano, A.M.A. Ceará, de Pedro Martins, e O Velho, o Mar e o Lago, de Camilo Cavalcante. O público, aliás, parece ter reconhecido isso na Curta Cinema, onde os dois prêmios, ambos de júri popular, foram para estes dois. Por outro lado, chega a ser vergonhoso que um festival do porte do Festival do Rio deixe de fora os dois trabalhos numa competição que acabou premiando o academicismo piegas de O Branco como melhor filme. Mas, um terceiro filme vem logo na sequência dos dois, e certamente ainda será muito exibido, mas não podemos deixar um ano fraco não nos fazer perceber que é um filme de alcance limitado, inclusive porque foi pensado assim, como um exercício de linguagem: O Mundo Segundo Silvio Luiz, de André Francioli. O que os três filmes trazem em comum é a adequação à linguagem e ao formato do curta antes de mais nada. Isso nos parece o principal diferencial, desde já. Curtas não devem ser curtas por acaso. Devem ser curtas por não poderem ser nada além disso. Os três filmes têm perfeitamente este alcance. O segundo critério de qualidade, que deveria ser o mais óbvio, mas não parece ser tanto assim: o tesão, o desejo incontornável de dizer algo que só se pode dizer com imagens e sons, a ousadia, que se não estiver presente no curta, estará onde? Neste ponto é que os dois primeiros abrem vantagem sobre o segundo, que é uma experiência de linguagem brilhante (e não uma simples brincadeira como querem crer alguns), mas não tem a vitalidade e a necessidade de existir dos outros. Com estas duas características, só temos estes 3 curtas, e é muito pouco.

É fato que por eles, já podemos tirar algumas lições. A primeira é que, como a procedência dos dois grandes filmes do ano mostra, está no Nordeste o sopro de vida do cinema de curta metragem brasileiro do ano. Seja no cearense, seja no pernambucano, vemos uma vontade de mostrar sua terra, sua paisagem, seus temas, seus formatos, que não apareceram nos pólos tradicionais (RJ, SP e RS). Do Nordeste, não custa lembrar, vieram ainda dois filmes bastante bons, ainda que imprecisos, o paraibano A Sintomática Narrativa de Constantino, de Carlos Dowling, e outro cearense, O Último Dia de Sol, de Nirton Venâncio. Além deles, é preciso lembrar do belo documentário pernambucano Brennand, de Liz Donovan e da tentativa menos afinada e bem resolvida com relação ao seu personagem, de Chico do Barro de Otávio Pedro.

A segunda observação possível e necessária a partir dos dois melhores filmes passa por uma olhada atenta na lista de equipe de ambos. Há um nome em comum ali, e certamente não é por coincidência: o montador André Sampaio. Não se pode chamar André de iniciante de jeito nenhum, ele mesmo já dirigiu dois curtas (O Palhaço Xupeta e Polêmica). Mas certamente é um dos mais importantes nomes do jovem cinema brasileiro desde já. Ele no Rio, e Paulo Sacramento em São Paulo, são hoje, disparados, os melhores, mais talentosos e ousados montadores do país. Pena que Sacramento já esteja trabalhando em longas com mais frequência, enquanto só agora André esteja estreando no formato, com o longa que ele mesmo co-dirige, Conceição. Se os curtas são importantes para formar grandes profissionais, com André e Paulo, esta vocação fica comprovada. Não por coincidência, unindo estes dois pontos, assim como André montou (junto com Karen Barros) dois filmes de origem nordestina, ano passado Paulo montou o melhor filme do ano, que também vinha de Pernambuco, Texas Hotel, de Cláudio Assis. É a junção da vitalidade com a formação e o talento.

O terceiro filme na lista dos melhores indica a outra linha de destaque, sempre presente, a dos filmes de escola. É verdade que neste ano a produção atingiu números nunca vistos (quase 50 curtas), mas nem por isso foi um bom ano. O filme de Francioli foi o único destaque numa das mais tradicionais formadoras de talento do país, a ECA-USP, que produziu menos do que nunca na sua recente história. Enquanto isso, a UFF (segunda mais antiga escola em atividade ininterrupta no país) produziu uma fornada numericamente grande, mas dentre os quais apenas Folia de Reis de Maurício Mulim se destacou indubitavelmente, com Sociobiologia de Antônio Carrilho e Carrapicho de Toshie Nishio chegando num distante segundo lugar em interesse. A FAAP teve um ano de produtividade impressionante, mas como é sua marca, com profunda irregularidade e ausência de propostas estéticas mais firmes. Se, por um lado, Ardil, Três Minutos de Imponderabilidade e Identidade apresentaram um nível de pesquisa de linguagem nunca visto antes na escola, e Pedaços de um Pedaço e Cavalheiros foram bem sucedidos nos seus mais tradicionais campos, garantindo um ano numericamente expressivo de filmes interessantes na escola, por outro lado o resto da produção foi extremamente desigual, dos mais básicos exercícios a alguns arroubos verdadeiramente fascistas. A Estácio de Sá, do Rio, que reforçou sua posição como quarta escola de cinema em produção no Brasil, teve uma subida de nível impressionantemente rápida. Se a produção ainda apresenta muito da ingenuidade temática de anos anteriores, já permite exercícios de linguagem mais bem sucedidos como o ótimo Coleira de Abutre e alguns filmes com um domínio maior da narrativa cinematográfica, como A Mulher do Malandro Fugiu com o Otário. Mas, unindo as pontas deste balanço, parece estar faltando uma autêntica escola de cinema nordestina, que remexa com os alicerces da produção nacional.

Passados estes pontos positivos, ficamos com um mar de estranhezas. Tivemos um júri em São Paulo dando o prêmio de revelação do ano a um publicitário que realizou um mau, óbvio e piegas mini-longa. Tivemos lá também uma série de filmes exibidos no Panorama Brasil que eram tudo, menos brasileiros. Não fica nada bem ver filmes com a paisagem londrina ou novaiorquina, por acaso dirigidos por brasileiros no exterior, mas que claramente não acrescentam nada ao cinema brasileiro nem a nenhum panorama. Ainda bem que a notícia que nos chega de lá é que os sempre sensíveis organizadores do festival perceberam este dois equívocos e devem mudar a premiação no ano que vem, e retomar a muito mais simpática idéia da sessão Brasileiros no Exterior, que faz muito mais sentido.

Tivemos uma série de bons filmes, de realizadores já conhecidos no formato, mas que parecem que no futuro não ganharão destaque em meio ao conjunto de suas obras. Foi o caso do enésimo (e enesimamente bem realizado) exercício de linguagem de Jorge Furtado, O Sanduíche; do cinema de climas e subentendidos de Eduardo Nunes em Tropel; do documentário-mosaico São Luis Caleidoscópio de Hermano Figueiredo; do plano-sequência de inspiração metalinguística Outros, de Gustavo Spolidoro; da animação poético-cômica de Otto Guerra, Cavaleiro Jorge; do domínio da linguagem e boa direção de atores de BMW Vermelho, de Reinaldo Pinheiro e Edu Ramos; da animação com padrão de qualidade internacional Dois de Marcos Magalhães; da ingenuidade encantadora de Chifre de Camaleão de Marão; até a estranheza perturbadora de Quem? de Gilson Vargas, possivelmente o quarto melhor filme do ano, e talvez melhor do que seu anterior. Todos, destaque-se, filmes que se encaixam na categoria de muito bons, mas não excepcionais. Houve ainda dois engraçados filmes curitibanos, Os Outros de Fernando Mozart e Aldeia de Geraldo Pioli, ambos com pequenos deslizes de linguagem, mas muito bem sucedidos; e a animação sem vergonha de Almas em Chamas de Arnaldo alvão, superestimado, mas ainda assim muito interessante. Destaque-se ainda a comicidade surpreendente de Célia e Rosita, de Gisela de Mello, e a narrativa construída de Sargento Garcia, de Tutti Gregianin.

Surpresas menos agradáveis nós tivemos com deslizes de produção de bons curta metragistas, como foi o caso do fraco Pormenores, de Flávio Frederico, que não passa de uma experiência formal vazia, que o insere no estilo mais do superestimado Todo Dia Todo do que do subestimado e excelente Copacabana. Do Rio Grande do Sul, veio o 16mm equivocado Dois Filmes em uma Noite de Fabiano de Souza, e o inqualificável O Branco de Ângela Pires e Liliana Sulzbach, enquanto a mesma Liliana apresentou em 2000 o irregular, mas fascinante documento A Invenção da Infância. A produção carioca, reunida num asessão específica na Curta Cinema, decepcionou, com o correto mas pouco elucidativo ou instigante documentário Rus Tropique; a ficção mal resolvida, embora de concepção promissora, Gurufim na Mangueira; o equívoco clássico de Os Desastres de Sofia; os diálogos inteligentes para pouco filme de O Cabeça de Copacabana, de Rosane Svartman; e o cinema experimental absolutamente desprovido de novas idéias, apesar de dois ou três ótimos momentos, de Mais Velho. Houve ainda o carioquismo pouco procedente de Para Ser Feliz para Sempre.

Não se pode dizer que tenha sido exatamente uma surpresa a incapacidade do humor de Allan Sieber se sustentar ao longo dos 12 minutos de Os Idiotas Mesmo, quando sua linguagem televisiva já devia ter encontrado sua moradia mais adequada, a MTV. Na animação, destaque-se ainda a obviedade do humor fácil e por vezes quase fascista de Os Irmãos Willians, um caso típico de filme de concurso de roteiro. Houve ainda uma série de filmes completamente despropositados como o comercial de cigarros cinematográfico Um Sonho de Ícaro; ou a piada mais rasteira do ano, The Book is on the Table (que, aliás, começa a formar uma obra assustadora para a sua diretora, Betse de Paula); ou ainda a ficção científica, que deixava no ar a pergunta "Será que é sério??", Nš 19; ou finalmente a trama policialesca que resultava no mesmo questionamento, em A Caravela. Por fim, não podemos deixar de citar dois filmes que se inserem numa longa tradição do cinema nacional, do perigo que representou e representa a influência de Glauber Rocha mal digerida, O Ciclo da Paixão e A Verdade às Vezes Mancha.

Claro, poderíamos ficar aqui mais algumas laudas citando e comentando brevemente nomes de filmes, mas o resto da produção se inclui na categoria do mediano, apenas. Resta esperar que os realizadores de filmes muito bons atinjam novamente o excepcional de outros filmes, que os que tropeçaram encontrem de novo o caminho, e que, acima de tudo, as lições dos três melhores filmes do ano fiquem, como de resto eles certamente ficarão. E que, em 2001, possamos voltar a discutir estética e produção de curtas de forma unida, para tentar entender melhor o processo que levou a este 2000, que se não chegou a ser um Annus horribilis, certamente pode ser chamado de annus obvius.

Eduardo Valente