A Ilusão Compartilhada
Representação e registro em A.M.A. Ceará

 

"Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta?
O mundo aparente, talvez?... Mas não! Com o mundo
Verdadeiro suprimimos também o Aparente!"
Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos

De onde vem a imagem documental – esse estranho corpo rígido de vida – de onde é extraído seu sentido, de que matéria prima se fazem as imagens reais? Qual a mágica de absorção que faz da câmera um bicho capaz de engolir todos os bichos? Seria mesmo esse o dom da imagem – essa mumificação do externo em Verdade Objetiva captada, como se o documentarista saísse para uma bela pescaria das Verdades encobertas? A câmera como um anzol agarraria a imagem pela boca e pronto? Eis o documento?

Pode parecer um exagero, uma alegoria por demais irônica, mas é assim que grande parte da produção documental ainda se vê, ainda se pensa. A maioria dos filmes documentários (principalmente esses monótonos programas de TV que se multiplicam como uma "retomada do gênero") trata o fazer documentário ainda como uma espécie de safári, uma expedição em que as imagens perdidas viveriam como animais raros prontos a serem capturados. Fora o pseudo-heroísmo pedante, há aí uma imensa ingenuidade: que tamanha estupidez é essa de quem se pensa descobridor de uma imagem, desvelador de uma realidade? Realidade essa provinda de onde, nascida do quê? Brotada de si mesma?

Primeira questão básica: nenhuma realidade será descoberta, pois tudo não passará de invenção.As realidades serão construídas.

Segunda questão básica: não se trata de uma invenção ideológica que esconda a "real" realidade – pois qualquer realidade só existe enquanto criação humana: não há o que ser escondido.

Terceira questão básica: todo documentarista é um ficcionista por definição – com suas peças limitadas ou expandidas pelo improviso e o acaso, o documentarista é um fazedor de mosaicos cuja cor das peças lhe escapa ao controle.

Isso nos impediria de documentar? Já se pensou que sim, já se gritou que sim. Um fim para o documentário, um fim do registro não pré-roteirizado?Acredito que não: não se trata de desistir das imagens, deixar de acreditar em sua capacidade de surgir no inesperado espontâneo, mas sim de mudar o objeto do que se documenta, ou melhor, desobjetar o que se filma. Nesse ponto da discussão, em que há o embate claro desses dois extremos: o documentário dogmático-científico e o não-documentário desconstrutivista, é que a obra de um documentarista como Eduardo Coutinho emerge com toda a sua força:

Registrar a oralidade é, como diz Coutinho, registrar um evento específico cuja presença é efêmera e fruto da criação do filme. Um evento gerado pela cumplicidade que Coutinho estabelece com suas personagens – pelo espaço marginal (no sentido de não pertencer nem ao diretor, nem ao personagem) gerado ali, no processo fílmico.Não retratar a Realidade ou a Verdade nem desacreditar de seus sentidos, mas construir junto com seus personagens uma realidade, uma verdade do evento e da imagem. Em Coutinho, o registro da oralidade é a forma de constituir eventos estabelecidos não através da ditadura do olhar da câmera mas através de construções de realidade imersas nessa troca entre diretor, câmera e personagens. Mas seria essa oralidade a única forma de se construir uma relação não objetalizante com o que se filma? Estaria a imagem fadada a só se desmistificar se voltando para os velhos truques da oralidade enquanto parcialidade explicitada? Não – e é aqui que entra o exemplo de um belo filme como o de Pedro Martins: AMA.Ceará.

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Por que o título "A Ilusão Compartilhada"? Que ilusão é essa de que falo, com quem se compartilha o ilusório? A questão é simples, porém sutilmente equilibrada em uma fina corda que pode tanto jogá-la para um extremo como para outro... O que é a Ilusão?

Em primeiro lugar, lembremos de desestabelecer a filiação direta entre ilusão e falsidade – não há o falso na medida em que o verdadeiro também não há. Portanto, Ilusão trata de todo conjunto simbólico (e aqui falamos do cinema como um todo) em que, através de uma coerência interna, cria para si própria um estatuto de realidade, ou seja, existe enquanto um conjunto de códigos e eventos que dizem respeito a si mesma e, assim, torna-se crível, verdadeira. Criar a ilusão de um filme é conquistar o olhar do espectador para um espaço-tempo específico do filme, em que a realidade imposta é a do filme e a coerência e a lógica passam a ser regidas dentro do filme.

Tanto no cinema ficcional quanto no documental, esse ilusionismo é a ferramenta de conquista do olhar para um tempo sucessivo de imagens que se realizam na tela – o quê cria, dentre outros efeitos, a curiosa concordância entre espectador e filme: o espectador concorda com os personagens, acredita nos eventos, satisfaz-se com as atitudes e a narrativa. Em suma, o filme faz, e tem, um sentido. Ilusão, portanto, aqui, não trata da Verdade ou da Mentira, mas da presença (ou não) de um sentido, de uma linha para onde aponta a narrativa, a tese ou a sucessão de imagens apresentada. Nesse estabelecimento ilusório, porém, a ligação entre filme e espectador tende a uma problemática relação de obediência do segundo em relação ao primeiro: o discurso do filme (seja na ficção clássica, sejam nos documentários-objetivantes) torna-se um ditador, um mono olhar dogmático sobre a realidade construída. A velha questão da Voz de Deus documental não se trata apenas da enferrujada e didática narração em off, mas de todo um modelo de decupagem e montagem de imagens, de todo um modelo narrativo que tenta fazer do documentário um Documento, um registro terminado sobre seu objeto de estudo, como que na tentativa de mumificar o evento nas imagens. O que há, então, de diferente na Ilusão estabelecida (e no modo como esta se estabelece) no filme de Pedro Martins?

O diferencial encontrado em A.M.A. Ceará (assim como em grande parte do trabalho de Eduardo Coutinho – principalmente Santo Forte e Santa Marta) é o fato de que não cai em nenhum dos dois lados moralistas da corda bamba: nem se considera verdadeira, nem se despreza enquanto falsa (esse desprezo é a marca central do trabalho de cineastas como Arthur Omar, que, para desmistificar a objetividade, faz de seus "documentários" pérolas radicalizantes da falta de sentido).

Entramos num espaço-tempo ilusório em que emerge, do próprio registro documental, a fantasia e, desta, emerge o registro. Por isso mesmo, o filme é reconhecido como um ensaio poético e documental – pois os espaços de objetividade e fantasia se mesclam num único e belíssimo evento, onde personagem e diretor brincam um com o outro, intercalam-se naquele instante em que, como num show de mágicas, percebemos o truque, sabemos que estamos nos enganando... Mas Verdade e Mentira não fazem mais sentido. Essa brincadeira se dá num explícito respeito mútuo, numa troca marginal de imaginários entre cineasta e artesão – nos brindando com belezas literalmente inenarráveis (como a dos três momentos em destaque abaixo):

O primeiro é a animação dos bonecos de tartaruga entalhados – onde a imaginação dos dois (Pedro e Mestre Alves), onde os elementos e as técnicas dos dois mundos (bonecos e filme) se juntam numa mesma realização: a animação. Há muito mais de documento nesta "brincadeira"do que em minutos de discursos sobre a arte popular...

O segundo é o momento da caça à onça – onde Mestre Alves realmente brinca com o cinema, brinca com o espectador. Seu "causo", sua mentirinha de caçador representado ali diante da câmera - e não se trata de mentira ou verdade mas de uma troca entre câmera, personagem e espectador – o que está documentado ali é essa brincadeira, essa cumplicidade – que muito mais nos diz sobre esse homem e muito mais dá sentido ao filme do que uma mera entrevista sobre seus costumes. Essa consciência da criação ilusória, compartilhada por personagem, diretor e público é que é a riqueza do filme, é o que o faz um registro do efêmero e não um trabalho de taxidermistas da imagem.

O terceiro, que fecha o filme, é o discurso de Mestre Alves encarnando São João Batista – aqui, no auge da cumplicidade, o personagem, o público e o diretor brincam de recriar a cena do batismo de Jesus, se divertem com essa falsidade escancarada, com essa falta de pudor, típica da cultura oral brasileira em se brincar de iludir... Uma ilusão compartilhada, criada em conjunto – uma ilusão que não é ditada pela câmera mas, sim, emergente do instante, do momento daquela troca. Não há um único autor ditando o filme – A.M.A. Ceará é belo por ser um espaço vivo dessa troca entre autor de cinema, artesão e público. Nada há de registrado ali se não a força de sua personagem e suas peripécias com a câmera.

Por isso aproximo o trabalho de Coutinho e de Pedro Martins – não pelo formato ou método, mas pela postura em relação ao registro e na tentativa de se estabelecer entre autor e personagem, não um papel de sujeito e objeto, mas uma troca mútua de imaginários. Martins e Coutinho trabalham com o imediato, com o que só existe enquanto filme e efemeridade: nada está fechado, congelado, digno de ir para um museu. O cinema de ambos não termina quando termina o filme – pois ambos se expandem para o imaginário de seus personagens, para a presença de seus rostos, para seu modo de estar ali compartilhando e criando seu mundo diante do cinema e através do cinema. Fica aqui o elogio.

Felipe Bragança