Tsai Ming-liang: a água e o rio


Lee Kang-sheng em O Rio de Tsai Ming-liang

Pouco se conhece no Brasil do trabalho dos cineastas que formam a segunda geração da assim-chamada "Nouvelle Vague" de Taiwan, a geração que vem a reboque do reconhecimento internacional dos "originais" Edward Yang e Hou Hsiao-hsien e que agrupa nomes como Stan Yin, Yee Chih-yen, Ang Lee e Tsai Ming-liang. Com exceção dos dois últimos, que tiveram boa parte de seus filmes exibida comercialmente (depois de um primeiro contato com os festivais), somente agora no finalzinho da década podemos travar um conhecimento mais efetivo dos cineastas da primeira geração, ainda que este conhecimento limite-se àqueles que frequentam as sessões menos festejadas da Mostra de São Paulo e do Festival do Rio. É difícil para nós, apesar dos esforços em suprir esta carência, fazer uma avaliação digna do novo cinema de Taiwan sem apelar para uma análise em que pesem mais fatores secundários (históricos, socio-econômicos, avaliação do contexto geo-político, etc.) que questões estéticas; ou seja, uma avaliação deficiente, sempre na dependência de opiniões exteriores e com pouca sustentação conceitual.

Pode-se questionar, porém precaria e inconclusivamente, com base numa breve comparação entre os trabalhos dos dois expoentes mais conhecidos desta "segunda geração", quais os fatores que poderiam apontar uma unidade qualquer que justifique a noção de grupo contida no rótulo -- uma noção ultimamente mais utilizada como uma estratégia de cinematografias periféricas para a conquista de um nicho no mercado mundial e reconhecimento de carreiras individuais em festivais do que qualquer outra coisa (vide Dogma 95 ou o nosso natimorto e incongruente "Novo Cinema Novo").

A obra taiwanesa de Ang Lee (3 filmes) têm como tema central o conflito entre tradição e modernidade (tema cujo raio engloba toda uma série de questões como ocidentalização e consumismo); o tom que impera é o da comédia de costumes coloquialista e com forte inclinação populista; e seu núcleo dramático é invariavelmente a família tradicional, subitamente colocada frente a um dilema dos novos tempos (cuja matriz é quase sempre da ordem sexual). As soluções para os dilemas apresentados passam pela superação de uma ordem preestabelecida rígida e obsoleta (ainda que alguns representantes desta ordem demonstrem uma tendência progressista) através de um aprendizado de convívio com o novo, repleto de valores humanistas, tais como compreensão e respeito. O otimismo de Lee baseia-se sobretudo na confiança de que a comunicação é a chave para o reconhecimento e valorização do outro; sua aposta é na conciliação dos dois mundos. O que faz dele, digamos, um "integrado".

Tsai Ming-liang é um apocalíptico. A idéia de conciliação só aparece em seus filmes sob uma chave irônica: os números musicais delirantes de O Buraco (Dong, 1998), por exemplo, exacerbam um otimismo levado às raias do ridículo. Não há qualquer noção de aprendizado em sua obra, nem ordem moral a defender: o tom é distanciado, não há adesão a nenhuma ordem de valores. Tradição e modernidade são faces de uma mesma moeda corrupta por natureza; toda forma de convívio social somente intensifica a solidão de seus agentes. Não há comunicação possível; sua ficção é a do desencontro.

* * *

É estranho então que sua obra-prima O Rio (He liu, 1996) comece com um reencontro casual entre seu protagonista (Lee Kang-sheng) e uma amiga (Chen Shiang-chyi) que se cruzam nas escadas rolantes de uma loja de departamentos de Taipei. De certa forma, porém, este encontro toma lugar em um espaço ainda não-diegético, uma espécie de prelúdio à ficção, no qual o protagonista ainda é Kang-sheng e não Hsiao-kang, a personagem. Não fica claro em que momento o ator-personagem cede lugar ao outro (somente depois de quase uma hora decorrida a partir da primeira cena, quando a amiga chama o rapaz de Kang-sheng, alguém resolve chamá-lo de Hsiao-kang), o que equivale a dizer o momento em que a ficção toma as rédeas da narrativa, mas é certo que isto acontece em algum ponto localizado nas primeiras sequências, logo antes ou logo depois do banho no rio fétido. Visto que não há qualquer espécie de desenvolvimento psicológico (poderíamos dizer até uma recusa), e que o único traço de caracterização da personagem é a dor misteriosa que lhe surge no pescoço, alguém pode arriscar o palpite de que todo o primeiro movimento do filme, que culmina na cena de sexo no hotel, não passa mesmo de uma pequena ficção isolada, uma preparação sugestiva e com jeito de alegoria para o que está por vir. Esta interpretação não me parece de todo absurda e tem a vantagem de levar ao extremo a dúvida se a dor no pescoço é causada diretamente pelo mergulho no rio -- uma ambiguidade que fundamenta toda a narrativa -- além de explicar o desaparecimento da amiga na história.

Por outro lado, a primeira metade do filme segue uma lógica tão precisa na sua construção -- um método de exposição das personagens e situações baseado na comparação metódica e numa montagem maliciosa de aproximações e afastamentos -- quanto repleta de carga de significados. Depois que Hsiao-kang (ou Kang-sheng) se lava no hotel, sua amiga chega trazendo sua roupa limpa e alguma comida, para logo depois ambos se engajarem nos afazeres sexuais. Um corte interrompe a ação e nos leva a um espaço desconhecido, onde um corpo masculino nu envolvido em uma toalha rejeita as carícias de um outro homem. Estamos numa sauna gay e o corpo pertence ao pai (Miao Tien) de Xiao-kang. Ele dirige-se à sala de banhos, lava-se, e vai para casa ocupar-se de seus afazeres domésticos para depois ser visto fazendo um lanche no McDonald's de um shopping. A magnífica passagem de cena do hotel para a sauna, dois ambientes escuros com um único foco de luz vermelha, provoca uma pequena confusão (pensa-se que o corpo na sauna pertence ao rapaz) e um estranhamento (do sexo à recusa violenta das carícias) que permeiam toda a exposição do filme e inserem-no paulatinamente naquela categoria que apontei como ficção do desencontro, algo reforçada pela recorrência dos elementos da ação (comida, sexo, banho), que indica uma tensão entre as duas personagens, tensão ainda mais reforçada por uma mesma técnica de caracterização física que fez lembrar a alguns críticos, não sem razão, o cinema de Keaton e Tati.

* * *

"A presença da água em cada um de meus filmes responde a uma necessidade específica. Com certeza, há um tema comum a todas estas imagens da água: elas simbolizam o desejo sexual", diz Tsai Ming-liang. Ele acrescenta: "Em O Rio, as imagens da água são mais complexas. A água é o que força os membros da família a se comunicarem novamente entre si. Estas personagens, que nunca passam o tempo juntas, encontram-se encerrados no mesmo apartamento -- tudo por causa da água. Ela representa uma força que invade, que destrói a família."

O que pode parecer mais esquisito ao ler este trecho de uma entrevista de Tsai publicada na edição de setembro de 1997 dos Cahiers du Cinéma é a idéia de que a água exerce um papel ambíguo e notadamente negativo em relação à família do filme: ela força os seus membros a uma espécie de convivência não-natural e à retomada de uma comunicação perdida, um elo canhestro que os levará à desintegração definitiva. A família não constitui um recipiente de valores ou uma reserva moral sólida, mas um núcleo fragmentado que reflete um senso de alienação e de desorientação em relação a toda espécie de vida social. O convívio ou a comunicação forçada entre seus membros leva tão-somente à realização de desejos e impulsos primários, o que ocasiona sua própria ruptura. Uma idéia particularmente pessimista de relações sociais.

Por fim, apenas para não correr o risco de entendermos O Rio como uma declaração universal de crise de valores (o que na melhor das hipóteses o colocaria numa posição privilegiada, mas inconclusa, de compreensão do mundo contemporâneo), sugiro acatar a sugestão da boa revista eletrônica australiana Toto e tentar sempre localizar o trabalho de Tsai "numa matriz de repressão e isolamento específica do passado violento, hibridez cultural e futuro incerto de Taiwan", uma tarefa que pode começar pela leitura deste mesmo ensaio e se estender nas edições futuras da série Cinemas da China aqui na Contracampo.

Fernando Veríssimo