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Satyajit Ray é o maior nome do cinema indiano, e a Índia é o famoso lugar mitológico da tal "segunda maior produção cinematográfica mundial", perdendo apenas para os ianques. Ray fez, entre 1955 e 1992, quando morreu, 30 longas-metragens, e é desde seu primeiro filme (Pather Panchali / A Canção da Estrada) considerado um dos cienastas mais importantes do mundo. Mas parece que tudo isso não foi o suficiente para a platéia da 24ª Mostra Internacional de Cinema se interessar e ir assistir a seus filmes, e nem o suficiente para programarem seus filmes em horários e salas apetitosos a quem quisesse acompanhar todos os filmes de Ray que seriam exibidos, uma quantia não maior que seis longa-metragens. Eu já tinha tido mais sorte, tendo visto uma retrospectiva mais compreensiva exibida há alguns anos na finada Mostra Rio, englobando grande parte dos filmes da prmeira metade da carreira do diretor. Essa tal primeira fase pôde ser conferida em São Paulo através de A Canção da Estrada, A Deusa (Devi), O Mundo de Apu (Apur Sansar) e, em exibição especial, a obra-prima do diretor, Charulata (A Esposa Solitária), não anunciada no catálogo da mostra. O diferencial da retrospectiva vista no Rio foram os filmes da segunda metade de sua carreira, de inclinação mais política e menos "ingênua" (se "ingênua" é mesmo uma boa palavra para definir o realismo e as numerosas invenções da câmara da Ray): Os Jogadores do Fracasso, A Casa e o Mundo e O Estrangeiro (Agantuk), último filme do diretor. O cópia de Agantuk, infelizmente, teve problemas e não pôde ser exibida. Sem público, sem discussão, sem privilégio de exibição, como poderia essa retrospectiva funcionar? Resposta: pela perfeição da encenação deum grande cineasta, pelo poder encantatório de um cinema híbrido, tão pouco se deixando levar pela síndrome das obras-primas1 e tanto interessado na pesquisa visual-narrativa, tão disposto a sacrificar todo um filme por dois ou três belos insights que ele pudesse ter. Pois bem, nenhum desses insights oprejudica em nada nenhum de seus filmes, e ainda dá à antologia do cinema alguns momentos memoráveis, a serem eternamente recordados. A Casa e o Mundo e Os Jogadores do Fracasso, realidzados com uma diferença de 7 anos, participam da mesma preocupação estético-temática: uma história de casamento que ilustra um problema político da História da Índia. No primeiro, a esposa de um rico, bondoso e liberal suserano apaixona-se pelas idéias (e não só pelas idéias) de um líder nacional-fundamentalista que está prestes a causar uma guerra estúpida porque quer fechar as portas do país aos produtos importados, mais baratos e de melhor qualidade. No segundo filme, dois grandes aristocratas e donos de terra passam seu tempo jogando xadrez enquanto as Forças Armadas da Inglaterra penetram no território que deveria ser protegido por eles. Nesses dois filmes, pode-se ver uma rara e difícil mescla do cinema mais popular (melodrama de amor) com o cinema de deleite dos olhos, mais cinefílico (todos os arrojados movimentos de câmara e toda a elegância da direção de Ray) com, acima de tudo e de maneira mais forte ainda, o cinema conceitual-filosófico (os filmes tentam demonstrar teses filosófico-políticas, com sucesso e sem concessões). É absolutamente incrível conceber tal imbricação de um gênero em outro (ou em outros, já que são três) sem prejuízo para um deles geralmente é para o conceitual nesse tipo de filme , mas Ray é mágico. Esse gênero de cinema não era tão impressionante desde obras como Paisà, de Rossellini, ou A Grande Ilusão, de Jean Renoir. Renoir, aliás, foi o iniciador de Ray no cinema, já que o indiano foi assistente do autor de A Regra do Jogo em sua passagem pelos EUA, com O Rio Sagrado. Falando em influências, parece ter sido a força de Jules e Jim sobre Satyajit Ray que fez de Charulata uma obra tão única, sem condescendência uma das maiores obras que o cinema já fez. Sobre o filme de Truffaut, Ray já comentou: "Às vezes a forma [do filme] é ditada por um personagem. Quando Truffaut fez Jules e Jim, por exemplo, várias pessoas falaram desse filme como um estilo de montagem muito livre. Eu imagino que isso é tudo derivado da garota [a personagem de Jeanne Moreau] (...) Se Truffaut não adotasse esse estilo, não creio que o filme poderia exprimir a forma tão bem. Ele não poderia ser contado de uma forma convencional." Como não imaginar esse estudo de relação personagem-forma quando observamos a liberdade narrativa obrigatória para filmar a personagem de Charu? Ela pula (e a câmara pula junto), ela brinca de balanço (e a câmara balança junto com ela), mas acima de tudo Ray consegue com esse filme realizar o irrealizável: ele filma uma inspiração. Quem até hoje já não havia imaginado filmar o momento do aparecimento de uma idéia, o momento em que alguém tem uma inspiração? Pois num momento de Charulata, quando Charu está deitada na rede pensando num poema para escrever, uma miríade de fusões desaguam na tela à maneira de cascatas imagens de um mar, homens trabalhando, homens reunidos e sabemos, sem mesmo precisarmos ver as imagens seguintes, que ela realizará um belo poema sobre as dores de seu povo. Um filme que filma coisas difíceis é um filme notável. Mas filmar uma inspiração é uma experiência impossível, e Ray realizou o impossível. Os outros filmes de Ray são majestosos, são aulas de cinema, e eu espero o dia em que eu possa vê-los todos. Mas Charulata é mais que isso: é uma sessão de magia indiana, um poder extraordinário de exprimir sensações sem uma palavra, só com a leveza da montagem cinematográfica, esse artifício sobrenatural que só ele pode nos dizer se algo de inefável vai acontecer. Em Charulata, aconteceu. Ruy Gardnier |
1.Uso esse termo aqui para indicar a ânsia de fazer um cinema que se modela nas obras-primas do passado (privilégio do plano-seqüência, da fotografia impecável), com toda a solenidade que isso faz ressoar... filmes como A Eternidade e um Dia e Goya exemplificam muito bem o tipo de cinema que eu tento definir |