Reinventando o Cinema

Branca de Neve, Portugal, 2000


Robert Walser morto no começo de Branca de Neve de João César Monteiro

Depois do que nos mostrou em A Comédia de Deus e As Bodas de Deus, a minha idéia era de que nada mais que João César Monteiro fizesse poderia me surpreender. Pois esta é a marca de um grande, grande artista: Branca de Neve consegue pegar nossas expectativas e jogar por terra, reinventar a nossa percepção do que é o cinema, quais são componentes mais básicos.

Claro, poderíamos partir da mais fácil constatação sobre o filme: num meio audiovisual, mas que, eminentemente, tem sido visual acima de tudo ao longo de sua história, nada mais ousado que acabar com a imagem. Já que Branca de Neve se passa 72 minutos dos seus 75 de duração no escuro, com a tela preta, era fácil pensar que a contestação de Monteiro era simples assim: negar a visualidade ao espectador. Este conceito, embora presente no filme, é claro, seria por si só de uma ingenuidade extrema. Pois, hoje, o que mais importa não é ter ou não a imagem, mas o que se proponha com ela. Tornar a tela preta e não dizer nada pode ser uma posição política radical no cinema, mas certamente não cria uma obra-prima. É aí que entra o brilhantismo de João César: ele pega a noção da tela escura, e escolhe um tema que se adeque perfeitamente a esta (ausência de) estética. Forma e conteúdo, unidos e inseparáveis, como deve ser.

Pois bem, o que faz nosso mais querido pervertido com este escuro senão o mais óbvio: brincar com a percepção do espectador. O fato é, Monteiro passa o local por excelência do filme da tela para a imaginação do espectador. Com isso ele torna prática toda uma teoria de análise fílmica que defende que o filme já se constrói de qualquer jeito na cabeça do espectador que resignifica o que lhe é passado na tela. Monteiro elimina o "atravessador" e vai direto no cerebelo. Claro, alguns espectadores estão menos dispostos a serem de tal forma revelados: reclamam, chiam, saem, riem nervosos. Mas é impressionante seu poder sobre a maioria: após alguns minutos de inquietação, uma vez entendidas as regras do jogo, eles se rendem. E o que acontece na sala de exibição é algo novo, mágico. O espectador se vê criança de novo, sua percepção é inocente e despreparada para aquilo, ele vai aprendendo a reagir.

Neste contexto, é genial a escolha de um conto de fadas para levar à frente a narrativa, e logo um clássico: Branca de Neve. Na verdade, não o conto, mas um poema escrito por Robert Walser que narra e pergunta exatamente o que acontece onde o conto de fadas dos irmãos Grimm termina. Eles são de fato, felizes para sempre? Ao apagar a tela, Monteiro reconstitui a mais profunda memória de narrativa, as histórias de dormir, onde a criança (o espectador) é levado ao sono (e ao lar do inconsciente) pela gentileza das vozes e a fascinação da narrativa. Neste sentido, é fenomenal o trabalho de verdadeira interpretação que os atores fazem simplesmente ao falar pelos personagens. Nas vozes, a doçura do contador de histórias e a personalidade de cada um dos personagens. O espectador constrói cada um deles.

E sobre o quê é o poema? Justamente sobre o primado da aparência no mundo. Sobre os dípticos aparência/essência; verdade/mentira; pecado/perdão; amor/ódio, em suma, escuro/claro. Descobrimos que o príncipe não é tão encantado, que a madrasta não era tão má, que Branca de Neve não é ingênua. Monteiro vai lentamente traçando uma teia de relações e camadas de verdades e mentiras entre cada discurso. Cada nova fala revela mais um pouco, e mais um pouco e... E as falas são excepcionais, não dá para pensar em cansaço, só em fascinação. "Em vez de olhar, prefiro escutar", diz a personagem, e nós concordamos. "A nossa lei é a doçura, esquece as outras leis..."

E os momentos sem a tela preta, o que são? Planos de um céu azulado, com nuvens brancas, brilhante. Pontuam a narrativa como que alertas ao espectador, como que invasões do mundo real no sonho. E, ao final, terminado o poema, ele, o pervertido, o hedonista. João César aparece, rindo. E é só.

Como todo bom filme, mesmo sem imagens, é impossível explicar o que acontece na sala de cinema na exibição de Branca de Neve. Basta dizer que é mágico, é novo, é genial. E, ao ser ousado e afrontoso, não o é por pura negação. Propõe algo, uma nova percepção, um novo tempo, uma nova dedicação. Um cinema essencial, em oposição ao de aparências.

Eduardo Valente