A Quebra dos Paradigmas

No Quarto da Vanda, Portugal, 2000


Vanda Duarte em No Quarto de Vanda de Pedro Costa

Existem razões demais que façam de No Quarto da Vanda um filme absolutamente essencial ao pensamento do cinema de hoje. Mas, podemos começar por um acontecimento absolutamente sintomático. Afirmamos quase ao longo de toda esta edição de retrospectiva dos festivais que eles cresceram esquecendo apenas dos filmes, das propostas. Pois bem, num contexto desses, parece exemplar que o filme de Pedro Costa não tenha chegado a tempo, tenha sido exibido apenas uma vez na repescagem, com um público total de em torno de 20 pessoas. Este é o número total de pessoas que assistiram ao filme em sua passagem pelo Brasil. É uma pena, mas é também um caso a ser estudado, pois realmente o filme não se encaixa de forma alguma no tipo de evento que se tornaram nossos festivais, na correria pelo máximo de filmes e o mínimo de reflexão.

Comecemos então pela estrutura do filme: No Quarto da Vanda acompanha alguns moradores do bairro mais miserável de Lisboa, enquanto suas casas vão sendo demolidas para a construção de um conjunto habitacional. O filme dura quatro horas, nas quais se reveza entre algumas diferentes pessoas, sempre com a câmera parada e quase sempre sem cortes dentro da mesma "seqüência". Bem, já de saída, toda esta linguagem da análise fílmica parece inadequada, nada se aplica muito bem ao filme. Pois No Quarto da Vanda tenta ser mais vida do que filme. A câmera parece uma testemunha de um processo que não se permite simpatias ou antipatias. O filme também não aparenta possuir uma estrutura evolutiva: são apenas cenas de vida que se sucedem. Poderia começar aonde começou ou bem antes, ou depois, e terminar também a qualquer momento. Não há uma idéia de evolução, que é um dos mais caros bens do espectador de cinema. Mesmo o cinema documental clássico estabelece uma narrativa, possui um início e final de argumentação. Este é o primeiro e principal paradigma da linguagem que Pedro Costa afronta: a falta de desenvolvimento dramático. Não há, de fato, argumentação, portanto, não pode haver desenvolvimento.

Pode-se discutir este ponto com relação a questão da demolição do bairro. Embora ele realmente não comece com o início deste processo nem termine com a derrubada da última casa, de alguma forma ele segue este momento que é o único desenvolvimento de fato. Ou seja, o filme é o desenvolvimento de uma demolição. Mas, não apenas de um bairro, que fica como metáfora, mas principalmente de suas pessoas (personagem parece completamente inadequado). Porém, a grande demonstração de sensibilidade do diretor é que esta demolição, esta decadência, não é vista sob os olhos de uma moral. Uma vez que a maioria das pessoas em cena se drogam o tempo todo, seria fácil estabelecer uma relação entre drogas e decadência. Se no filme isto acontecer é por pura decisão do espectador. Costa mantém uma distância onde ele acaba afirmando silenciosamente que a demolição e a decadência daquele bairro e de seus moradores é a nossa decadência como sociedade. Todos somos, por assim dizer, "culpados" ao abandonarmos aquela gente à sua própria sorte. As drogas, certamente, são as menos culpadas de tudo. Muito mais efeito do que causa.

A relação que o espectador estabelece então com estas pessoas é no mínimo conflituosa. Não se constrói drama algum, portanto a identificação é complicada. Ao mesmo tempo, acostumados que estamos com a manipulação de personagens pelo cinema, nos indicando o que devemos sentir quanto a cada um deles, é completamente desconcertante esta posição de simplesmente assistir ao desenrolar daquelas vidas. Não nos parece que tenhamos qualquer controle, porque não nos parece que o diretor possua qualquer controle. Não sabemos como aquilo vai acabar, o que esperar do plano seguinte, nada.

Talvez a mais pertinente reflexão do filme na atualidade seja justamente sobre o redimensionamento do cinema que está-se anunciando com a chegada da câmera digital. Muito se tem dito sobre filmes aos quais ela se adapta melhor ou pior. O que Pedro Costa consegue fazer é uma verdadeira cartilha de funcionamento do equipamento, negando alguns clichês e confirmando outros. O primeiro a ser negado é o da mobilidade da câmera digital. Sim, ela é leve, sim, ela é maleável. Mas só por isso ela precisa balançar o tempo todo, como nos parecia até agora? Há um completo esvaziamento de sentido neste excesso de movimentação, e sua suposta relação com o "real". Ao parar a câmera no filme inteiro, Costa parece dar um recado a todos os realizadores digitais. Não é porque a câmera PODE se mover que ela DEVE fazê-lo. E não é porque se mexa mais ou menos que capta a realidade mais ou menos. A realidade está lá, não precisa se mexer tanto.

Por outro lado, Costa leva ao paroxismo duas outras "habilidades" do material digital. Primeiro, seu caráter de "olho onipresente". Inúmeros realizadores têm declarado a facilidade que é lidar com seus atores ou documentados com esta nova câmera, pois na maioria das vezes o tamanho e a aparência quase amadora do equipamento, além da falta de necessidade de iluminação artificial, criam um clima intimista que incentiva a naturalidade, em oposição ao aparato do cinema tradicional. Com isso, o filme propõe uma relação com as suas imagens quase contemplativa.

O segundo ponto diz respeito ao tempo. Com a câmera digital, pode-se filmar por mais tempo seguido, e principalmente, sem o excesso de zelo pelo negativo que o cinema se acostumou. Assim, a busca incessante pela imagem rara, pelo extremos de significados, é trocada pela possibilidade da imagem vazia, da imagem feia, da ausência prévia de significados, criando tantos outros ao serem assistidas. O jogo com o tempo e com a montagem permite ao filme uma dilatação quase incômoda mesmo ao mais aberto dos olhares, pois, adestrados, aguardamos o "acontecimento", o "momento decisivo" que quase nunca vem.

Por isso tudo é que No Quarto da Vanda foi talvez o mais importante filme do Festival do Rio BR 2000. E das 135.000 pessoas que o frequentaram, só 20 viram o filme. É o símbolo completo da relação do público com o mundo de hoje. Distante e apressada. Já Pedro Costa propõe um novo olhar, uma nova aproximação, um novo humanismo cinematográfico, cujos extremos só podemos torcer que o futuro do cinema consiga apreender.

Eduardo Valente