Piada de Português



O Fantasma de João Pedro Rodrigues

Se alguém me dissesse há alguns anos que um dia eu estaria começando um texto para dizer que a cinematografia portuguesa está, disparada, entre as 5 mais interessantes do mundo, eu não hesitaria em cair na gargalhada. Afinal, só podia ser piada. Pouco nos chegavam os filmes portugueses, e os trabalhos de um Manoel de Oliveira aqui ou a surpresa de João César Monteiro acolá não poderiam ser classificadas exatamente como "uma surpresa". Pois bem, o fato é que a frase tornou-se verdade. As cinematografias orientais tomaram o destaque nos festivais deste ano, mas isso apenas na superfície, pelo destaque dado a elas, assim como pelo expressivo número de filmes de grandes diretores que chegaram neste ano. No entanto, sutilmente, a quem quisesse perceber, 2000 foi o ano que consolidou de fato uma tendência que já vinha se formando nos últimos anos: Portugal é o país europeu hoje que produz com maior constância um grande número de filmes surpreendentes, ousados, e bem sucedidos.

Claro que boa parte desta surpresa é fruto mesmo da ignorância. Afinal de contas, como nos informou o muito elucidativo texto de apresentação da mostra Portugal-Brasil: Travessia de Cinema (realizada este ano no CCBB-RJ), escrito pelo crítico português Antônio Rodrigues, desde a década de 70 Portugal tem realizado um "cinema de autor" (na falta de termo melhor para opormos à noção do cinema-espetáculo, outro termo horrível, mas enfim...) dos mais atuais e ousados. Os últimos anos e os filmes exibidos nos festivais brasileiros só têm feito aumentar esta constatação.

O que ainda precisamos buscar são as razões para tão ousada cinematografia, e seu inegável "boom" nos últimos anos. Mais uma vez é Rodrigues quem vai nos ajudar. Ele aponta como fator determinante para a qualidade "a sua vincada identidade de cinema anti-espetáculo, irredutível e inconfundível. Um cinema que (até agora!) tem podido existir sem se preocupar com a rentabilidade, com a idéia totalitária do impacto junto às grandes audiências, um cinema cujos autores bem conhecem o cinema clássico e contemporâneo mas recusam os efeitos de manipulação, recusam a concepção de cinema como puro e fácil divertimento e escapam por completo à banalidade televisiva que diluiu o cinema em tantos países. (...) Cada um destes filmes é pensado como um objeto único que não obedece a normas pré-estabelecidas. Nenhum dos seus realizadores quis fazer um produto (grifado pelo autor) cinematográfico, em todos há a ambição de fazer um objeto insubstituível." (do catálogo da mostra Brasil-Portugal: Travessias de Cinema) Não se deve esquecer, porém, a presença de um cineasta como Joaquim Leitão, ou ainda um Leonel Vieira, que vêm tentando uma carreira voltada ao grande público, com extremo sucesso no caso de Leitão (Adão e Eva e Tentação).

É claro que a integração de Portugal à Comunidade Européia facilitou ainda mais o acesso a fundos de investimento, como o Eurimages, que financiam a produção mais vanguardista. Da mesma forma, os incentivos governamentais são bastante atraentes, embora em números absolutos a produção portuguesa não seja grande (chegando a 10 filmes por ano). Se comparado à população do Brasil e sua produção anual, porém, são números consideráveis. Também devemos citar p produtor Paulo Branco, talvez a figura de maior projeção na cena cinematográfica portuguesa, e que, embora poucos saibam disso no Brasil, domina também o circuito exibidor "de arte" no país. Inclusive, embora esteja por trás da obra recente de nomes como Manoel de Oliveira, João César Monteiro e João Botelho, e produza ainda filmes fora do país, como os de Sharunas Bartas, Branco é uma figura polêmica no seu país, pois muitos dos jovens realizadores reclamam que ele decide o cinema que é feito no país quase sozinho, pois tem acesso aos meios de produção, distribuição e exibição. De fato, tal oposição parece fazer sentido nestas circunstâncias, ainda que Branco seja responsável por um número considerável de obras-primas do cinema. Seu papel e sua figura ainda precisam ser mais estudados.

É claro que, além destas situações conjunturais, existe uma estrutura da cultura portuguesa que garante a permanência destas obras. Portugal é um país sob o signo da "saudade", que parece eternamente preso a seu passado de glórias, onde a imagem do mar fica como principal símbolo do país. A arquitetura das suas cidades e pequenas vilas, junto com a paisagem de seu interior, parecem carregar um peso que dá aos portugueses uma alma extremamente melancólica. Ao mesmo tempo, nos centros urbanos, existe um movimento de extrema atualização e inquietude, justamente em oposição ao saudosismo tradicional. Além disso, deve-se somar ao que se possa chamar do "estado dŽalma português" o acesso bastante vasto aos grandes centros culturais que sua localização permite. Não por acaso Rodrigues cita acima o fato dos diretores portugueses terem acesso à bagagem cultural-cinematográfica que têm.

Mas, passemos ao que realmente interessa: os filmes. É sempre preciso começar por Manoel de Oliveira, afinal como o próprio Rodrigues confirma, é com ele em Amor de Perdição que se reconhece o início deste cinema português moderno. A produção de Manoel de Oliveira desafia toda a lógica, tendo sido irregular no seu princípio, não só em qualidade mas em quantidade. À medida em que vai envelhecendo, produz cada vez mais, mantendo atualmente, no auge de seus 91 anos, uma média de um filme por ano. Boa parte deste fenômeno deve sim ser creditado a Paulo Branco e ao reconhecimento internacional que sua obra tem nos anos 90. Mas não é só a produtividade de Oliveira aos 91 anos que desafia a compreensão. Talvez o mais fantástico seja ver como sua produção fica mais e mais inovadora, poderíamos até pensar no termo "jovem", a cada filme. Oliveira é o símbolo da produção portuguesa também porque mistura como nenhum outro autor esta inclinação à contestação junto com o peso do clássico e do passado. Sua mais recente série de filmes impressiona, com títulos como Inquietude, Festa e A Carta, todos de uma coragem ímpar. Seu olhar fino, seus tempos longos cheios de significado, sua composição de imagem parecem a cada dia melhores. Em 2000, vimos Palavra e Utopia na Mostra de SP, uma "biografia" do Padre Antônio Vieira, onde Oliveira reafirma sua devoção à palavra e à composição imagética. Enquanto viver, ele nos surpreenderá.

O outro decano genial do cinema português que também produziu muito nos anos 90 é o autêntico maluco João César Monteiro. Conhecido no Brasil a partir de A Comédia de Deus (1995), Monteiro exercita a cada filme seu hedonismo extremo, sua perversão maravilhosa, onde nada é sagrado ou sério, onde tudo é prazer ou no mínimo a busca dele. A continuação deste, As Bodas de Deus, exibido no ano passado no Rio e em SP impressionou pelo radicalismo constante de seu trabalho. O que poucos sabem é que Monteiro estreou na direção nos anos 60, e possui numerosa e desconhecida obra no Brasil, que precisa urgente de retrospectiva. Neste ano apresentou talvez o maior petardo de todas as duas seleções, Branca de Neve, um filme de 75 minutos, dos quais 72 com a tela preta. Uma experimentação sensorial quase sem paralelos no cinema, o filme encantou e enervou platéias (embora, surpreendentemente, mais tenha encantado) em São Paulo, com a magia de seu conto de fadas safado, que vira ao contrário tudo que pensávamos que sabíamos sobre Branca de Neve e seus amigos.

Não se pode esquecer de dois nomes importantes que, embora não tenham tido filmes exibidos em 2000, também possuem longas e frutíferas trajetórias. Paulo Rocha começou a filmar em 1964, e há dois anos co-produziu com o Brasil O Rio do Ouro, estrelado por Lima Duarte, uma belíssima fábula passada no interior de Portugal com forte presença da natureza e da magia. Na recente mostra do CCBB foi exibido um filme de Rocha de 1966, Mudar de Vida, interessantemente também estrelado por um brasileiro, Geraldo Del Rey, e influenciado fortemente pelo Cinema Novo. O outro nome importante é o de João Botelho, que começou a filmar em 1980 e já foi exibido por 4 vezes na Mostra de SP, a última delas com o "buñuelesco" Tráfico, um filme abusado e mal educado.

Porém, grande parte da força do cinema português atual vem de sua produção mais jovem, amplamente exibida no Brasil, por sorte. Este ano tivemos dois dos filmes mais radicais das seleções (com Branca de Neve pode-se dizer que compunham a trindade de porradas na cara portuguesa), ambos no Rio e um só em São Paulo. Somente no Rio foi exibido No Quarto da Vanda, de Pedro Costa. O filme é amplamente discutido na seção Filmes em Questão do festival, mas vale dizer que Costa antena de vez Portugal com uma das mais atuais questões do cinema mundial, a do cinema digital. Este é o quarto longa de Costa nos anos 90, prova de que, mesmo com uma produção menor, os jovens talentos conseguem alavancar suas carreiras com maior continuidade lá do que no Brasil. Dos outros, nos chegou principalmente Ossos, não menos radical na sua abordagem dos excluídos e na sua forma. O outro filme é uma promissora estréia, e é importante que o seja, afinal todos os cinemas precisam constantemente arejar-se com novos talentos. Trata-se de O Fantasma, de João Pedro Rodrigues, um estudo sem concessões do instinto animal do ser humano. Exibido em ambas as mostras sob a categoria de "filme gay", certamente chocou e desagradou a muitos homosexuais que foram ao cinema apenas em busca de identificação com o que viam nas telas.

Além destes, foram exibidos no Brasil em 2000: A estréia de Maria de Medeiros na direção, uma superprodução histórica que acabou dividindo o prêmio do júri em SP, Capitães de Abril, filme que certamente pouco se encaixa no perfil que traçamos até aqui. Mais uma estréia, da diretora Cláudia Tomaz, com o filme Noites, que também busca um mergulho no mundo das drogas, embora certamente de maneira mais convencional que No Quarto da Vanda. E ainda, na mostra do CCBB, o filme Mal do veterano Alberto Seixas Santos, um ensaio rigoroso sobre o tema que o título antevê.

Devem ser citados ainda alguns diretores que tiveram seus filmes exibidos no Brasil nos últimos anos e que comprovaram a multiplicidade e a vitalidade do cinema português atual. Principalmente, talvez, Teresa Villaverde, diretora de Os mutantes, filme de cunho neo-realista, e que foi o terceiro da diretora, todos nos anos 90. João Mário Grilo, que filma desde 1979, mas que possui uma obra mais clássica, embora não voltada no geral ao grande mercado, do qual já pudemos ver no Brasil O Processo do Rei, O Fim do Mundo e Longe da Vista. O já citado Leonel Vieira, que ganhou o Festival de Gramado em 1999, com À Sombra dos Abutres, mas que exibiu no ano passado na Mostra de SP o equivocado Zona J, uma tentativa de retratar os subúrbios portugueses e a cultura negra de lá pelo registro do melodrama jovem, mas que erra em todos os níveis (de interpretação, roteiro, diração, trilha, etc). Nos atendo simplesmente aos filmes de longa metragem exibidos no Brasil nos últimos anos, teríamos que citar ainda Joaquim Sapinho (Corte de Cabelo), o veterano Fernando Lopes (O Fio do Horizonte), Fernando DŽAlmeida e Silva – que chegou a trabalhar no Brasil nos anos 80 (Tempestade da Terra). Sem falar nos filmes ainda não vistos no Brasil da última safra, como o indicado do país ao Oscar neste ano, Tarde Demais, ou os filmes de estréia de Fernando Rocha (Trânsito Local) e José Pedro Souza (Kuzz), além do média metragem que alguns consideram o melhor filme português do ano, Respirar (debaixo dŽágua), de Antônio Ferreira, o que, com a concorrência citada é de fato um grande elogio.

O fato é que, se Portugal ainda não conseguiu virar o "queridinho" do cinema mundial (como o cinema iraniano ou chinês conseguiram recentemente), já é mais do que hora do olhar atento perceber a importância crescente de sua produção no panorama mundial. Especialmente no Brasil que tem a facilidade (por vezes muito dificultosa, é verdade) de falar a mesma língua e de ter toda a relação histórica-cultural com o país europeu. O Brasil precisa descobrir a produção cinematográfica portuguesa, e talvez até se espelhar um pouco nela em busca da ousadia perdida. Pois se 2000 nos festivais mostrou alguma coisa foi que Portugal com seus 4 filmes (Branca de Neve, O Fantasma, No Quarto da Vanda e Palavra e Utopia) ultrapassou tudo que a última dezena de filmes brasileiros conseguiu realizar.

Eduardo Valente