Em Busca do Outro
O Buraco de Tsai Ming-liang



Lee Kang-sheng em O Buraco de Tsai Ming-liang

O que há de mais forte em O Buraco (como também no antecessor O Rio) são suas atmosferas – seja nos momentos de realidade crua, seja no delírio das passagens musicais, Tsai Ming-Liang arquiteta com perfeição o peso de suas imagens. Um peso que suga o olhar, que lança o olhar num estado que mescla ironia e angústia, consciência e hipnotismo...

Os planos estáticos se sucedem com a fluidez de seqüências de pura ação, os momentos dos não-eventos são filmados com extrema vivacidade. Nos tornamos íntimos de seus personagens, seus gestos mais banais e sua vida mais desinteressante nos são jogados no colo. Mesclando voyeurismo e consciência crítica, o filme descobre naqueles personagens suas atitudes e suas manias - tão pequenas e banais quanto suas vidas... Uma Humanidade dos pequenos instantes, das pequenas idéias – de uma desdivinização do mundo... Uma desconstrução do espaço dotada de extrema sensibilidade e carinho para com seus personagens (marca de Tsai também presente em O Rio).

Aquelas imagens de vida sem-vida saltam da tela e transformam cada gesto, cada olhar de seus personagens, em significantes não de uma narrativa, mas de uma atmosfera de solidão e silêncio. Atmosfera enriquecida pelo absurdo das sequências musicais que, sem qualquer palavra ou introdução narrativa, invadem a imagem com suas cores e sua alegria de outdoor... Este contraponto de luz é o ápice da escuridão – uma espécie de sintoma inicial para a rastejante epidemia que atinge toda a ilha. Uma praga da solidão, onde pessoas agem como baratas na escuridão – fugindo a todo e qualquer sinal de vida... Ao transformar os gestos solitários de seus personagens em indícios dessa praga, quando o individualismo está apenas em diferença de grau em relação à doença rastejante – Tsai consegue fazer uma das mais interessantes críticas ao atual estado de coisas: dessa mundialização esmagadora que nos tira o precioso tempo de olhar e conhecer o Outro. Por isso o título de Em busca do Outro, por isso o buraco...

Um buraco filho do acaso com a imperícia de um encanador – um buraco por onde quase pode passar um corpo humano... Assim se inicia a ligação entre o jovem e sua vizinha de baixo. Por essa absurda cratera, os dois enclausurados indivíduos irão se sentir – seja o cheiro, sejam os sons, seja o vômito do jovem sobre a sala da mulher... Uma passagem por onde água e luz escapam...Água e luz. Os dois vizinhos estão condenados: terão de se perceber diariamente, terão de se saber... Impedidos da cômoda ignorância de antes – condenados pela praga que assola toda a cidade – os dois serão obrigados a trocar olhares... A presença da água, do vazamento (reincidente de O Rio) como uma espécie de evento incontrolável, é uma bela imagem para essa estranha condenação... Por mais que se queira, por mais que se tente ser só, o Outro está ali: cheirando, olhando, tocando, ocupando espaço. Essa esperançosa impossibilidade de estarmos sós, essa feliz notícia de que às vezes é impossível não se importar com o Outro... Essa é a grande poesia encontrada em O Buraco.

Na penúltima cena do filme, em que o homem estende o braço e resgata a mulher daquela escuridão – está representado todo o sentido do filme, toda sua forte intencionalidade crítica e esperançosa... Num simples gesto humano, numa simples atitude ante a existência do Outro, aqueles seres solitários se comunicam e se reinventam... Uma ode ao diálogo, à abertura do indivíduo ao Outro – à descoberta no Outro de um pouco do que é seu, do que alheio e do que é de todos: a Vida.

Felipe Bragança