No Quarto da Vanda,
de Pedro Costa


No Quarto da Vanda, Portugal, 2000.


Vanda Duarte em No Quarto de Vanda de Pedro Costa

A dissolução do estilo, a dissolução do conceito de autor na obra, há muito já haviam sido desejados. Desde a nouvelle vague, quando irrompe um desejo novo de cinema numa geração que tem uma sensibilidade diferente, o cinema precisa apreender o mundo de outra forma, os laços entre obra e mundo já não devem ser regulados pelo jogo narrativo-ficcional ou pela mão forte demais de um realizador onipotente (embora o cinema do "todo-diretor" seja em muitos aspectos parecido com o cinema do "nada-diretor"), mas por uma nova relação com a realidade em que o trabalho do diretor deve ser o de se dissolver na realidade da encenação e na interpretação dos personagens. Não, isso não tem nada a ver com naturalismo. É, antes de tudo, uma jogada realista para lidar com a força de uma realidade nua e crua que nenhum estilo ou nenhum roteiro podem desenhar. Essa nova espécie de sensibilidade trabalha tendo em mente a notória fórmula de Jean Douchet a propósito do cinema de Mizoguchi: "uma impressão de verdade, de autenticidade, que se deve, evidentemente, ao máximo do artifício"1.

Se o cinema do começo dos anos 70 via nos filmes de Jacques Rivette, John Cassavetes e Jean Eustache uma novidade no aparecimento de um cinema ficcional direto, um "ao vivo", filmes tão "sem estilo", sem uma assinatura demarcável através de movimentos de câmara, era porque esse cinema conseguia captar algo que até então jamais havia sido captado no cinema: a dissincronia, a diversidade, a ausência de uma causalidade explícita dos acontecimentos e dos movimentos da câmara. É um cinema que recusa toda espécie de mise-en-scène, se com essa palavra queremos expressar aquele desejo totalmente racional do realizador de ter domínio absoluto sobre tudo que acontecerá em seu filme, é uma arte cinematográfica que recusa os manejos costumeiros do cinema por acreditar que eles filtram da realidade exatamente aquilo que não deve ser filtrado: a diversidade do real, o real funcionando em seu vigor, a força do instante.

A força desse cinema é colocar em perspectiva toda mestria, todo domínio de uma determinada acepção de arte cinematográfica para dar origem a outra, mais compreensiva e num diálogo mais direto com o mundo. É uma arte quase da não-técnica, quase do acaso. Mas isso tomado apenas do ponto de vista negativo, do ponto de vista da "linguagem cinematográfica", esse fantasma que ronda as academias. Do ponto de vista de sua positividade, é um cinema que se apropria da técnica cinematográfica para fazê-la expressar o que se deseja, e não o que ela deseja. No cinema contemporâneo, entretanto, todos esses esforços não foram feitos pelo cinema ocidental, sempre muito apropriado, depois das escolas de cinema, a aprender tudo muito bem-feitinho, muito bem-realizadinho, cada plano minuciosamente explicado. No cinema de hoje, é dado aos "primitivos" o dom de fazer esse cinema da impureza: Hou Hsiao-hsien, Abbas Kiarostami.

E qual não é a surpresa quando No Quarto da Vanda chega à tela. O ideal absolutamente descritivo, a necessidade de acabar com a moral, tudo isso é opção radical de Pedro Costa nesse filme. A câmara é estática, fixa, como que pouco se importando com qualquer coisa que vá diante dela. Não é que não se importe: ela apenas registra. Segundo a também famosa fórmula de Godard, muitas vezes retomada por Daney e Deleuze, "não uma imagem justa, mas justo uma imagem". Em três horas de projeção, apenas momentos nas vidas (reais? ficcionais?) de algumas pessoas. Toda ânsia de totalização, todo tipo de causalidade estão definitivamente excluídos de No Quarto da Vanda. O vínculo causal, principal elemento diferencial entre o tipo de experiência que temos na vida real e o tipo de sentimento que experimentamos quando vemos um filme, já não mais existe. O filtro existe; realizar obra é filtrar. Mas nesse filtro, a diversidade do real não fica presa. Sob pena de ser chamado de filme sem técnica (o que de forma alguma pode ser verdadeiro), Pedro Costa realiza um filme em que uma imagem não chama outra, em que as imagens podem ser todas vistas com ordem trocadas (menos as finais), e que mesmo assim é de extrema relevância para todo um ambiente político-social-existencial. A única área que o filme delimita é "filmagem de um bairro antes de ser demolido". Dentro desse ambiente, o filme registra o que acontece: as pessoas se drogam (sobretudo no quarto da Vanda), falam sobre droga, vendem verdura, fumam um cigarro atrás do outro, deixam-se pousar por moscas e ouvem uma infinidade de ruídos (música pop, uma televisão sempre ligada). Nada mais, nada menos. No Quarto de Vanda é provavelmente o espécime mais radical do cinema da dissolução do autor, do cinema "direto". Mas o que é certo dizer é que, depois da visão de No Quarto de Vanda, ninguém poderá dizer que não existe estética sem estetização. Um marco.

Ruy Gardnier


1. Douchet, Jean in Mestre Mizoguchi, Lúcia Nagib (org.), Ed. Navegar/Cinemateca Brasileira, p.184