A Genealogia da moral

Branca de Neve, Portugal, 2000


Robert Walser morto no começo de Branca de Neve de João César Monteiro

As primeiras imagens do filme nos apresentam um desenho em tons pastéis, uma ilustração de um conto de fadas. Por sobre ele passam os créditos iniciais do filme, com uma música clássica ao fundo. Toda a idéia que se poderia fazer de um filme intitulado Branca de Neve: o ideal de beleza harmônica, sem arestas, um deleite aos olhos. Para ser exato: a marca da perfeição, da honradez e do "caminho certo". A arte que julga o bem e o mal. Tudo deveria transcorrer assim, com belos gestos, belos comportamentos, belos exemplos para dar ao mundo. Toda aquela beleza dos fins-de-semana, aqueles sorrisos prefabricados da vida social... tudo isso estava para acontecer, não fosse a presença inequívoca de João César Monteiro, esse Midas ao contrário. É só os créditos acabarem que aparecem umas imagens equisitas. Uma dessas você vê aí em cima. Um sujeito morto, com muita neve em torno dele. Depois do filme, perceberemos que é Robert Walser, escritor suíço que escreveu de fato o poema da Branca de Neve que o João César Monteiro resolveu filmar. Logo ele, que gostava da Branca de Neve, foi morrer na neve! Mas as imagens de seu corpo morto não duram muito. Logo a tela é inundada por um preto esquisito, um preto que permanecerá ao longo dos 75 minutos de filme, sendo apenas intercalado nos momentos de calmaria por imagens do céu, ao som de música atonal, nada "harmônica". Pra ser sincero, em uma vez vemos imagens de uma escada, provavelmente de um belo castelo. E só.

Bom, deu pra perceber que tudo mudou, que o espectro já não é mais o mesmo. João César Monteiro não é o herói das falsidades ou do bom convívio social. Não é o homem dos tapinhas nas costas e dos elogios desmesurados. Ele não parece com os sorrisos de um domingo ensolarado, mas sim com o sorriso sádico de uma terça-feira à meia-noite (e observe que terça-feira é o dia de Marte, o deus da guerra: "mardi" em francês, "martes" em espanhol, "tuesday" [Tiw's day] em inglês). O mundo da correção e das harmonias eternas foi embora. Resta-nos agora apenas um mundo estranho, um mundo com o qual não estamos muito acostumados. Saímos do mundo da culpabilidade e entramos no mundo da inocência. Toda a tentativa de Branca de Neve é fazer o relato dos irmãos Grimm sair da esfera maliciosa do maniqueísmo e fazê-lo entrar em um mundo da potência: bons são os atos que aumentam a potência, maus são os atos que abaixam a potência. No filme de João César Monteiro, os cinco personagens principais do relato voltam à cena para novamente começar uma oposição: o príncipe deseja se juntar à Branca de Neve contra as maldades do caçador e da madrasta. Só que a madrasta e o caçador não desejam ser colocados como malvados. E até a moça recusa para si essa oposição!

A lição de João César Monteiro: a moral se constrói antes de uma forma recalcada do que de uma forma livre. É o príncipe, julgando os outros culpados, que se crê inocente: "eles são maus; eu não sou como eles; logo, eu sou bom". Esse não é o mundo da inocência. É o mundo da culpabilidade. Primeiro se desenvolve o mau exemplo para se constituir o bem como negação do mau: "Bom sou eu, que não dei fruta nenhuma..." Só que todos os outros personagens criam uma insurreição no relato. Acusam o conto de fadas de falsear a realidade. Afinal, se eles fossem de fato inimigos, poderiam estar eles conversando de bom grado, como de fato estão? Branca de Neve, caçador e madrasta fundam, dentro do relato dos irmãos Grimm, o mundo da inocência. "Sim, eu posso ter te feito mal, mas isso faz tanto tempo..." Não é o mundo do esquecimento, é o mundo da derrisão: sim, um ato pode ter feito o mal, mas esse mal é derrisório porque todo ato em si é bom, bom porque inocente.

Branca de Neve é todo preto. Sim, todo preto. E aí vão dizer: veleidade do diretor, brincadeira sem graça, gasto em vão do dinheiro público (sim, os gajos de lá são tão parvos como os daqui). Mas o que ninguém entende é que Branca de Neve precisa ser preto. Não somente porque é um ato inocente e bom, mas principalmente porque é preciso recusar a imagem, porque é justamente a imagem que é a figura da culpabilidade. Ei-lo aí, mau caçador! O príncipe é sempre belo, o caçador é sempre feio: precisaríamos ter visto isso na tela? O trabalho de depuração da imagem para fugir do mundo da cupabilidade pode ser alcançado por outras formas: Fuller, Mizoguchi, Hou Hsiao-hsien conseguem a seu modo operar esse filtro da moral, conseguem realizar o mundo da inocência. A maneira que João César Monteiro encontrou para Branca de Neve foi essa: já que ela é tão branca, por que não consegue iluminar a tela? No filme de Monteiro, todos são Brancas de Neve, todos são caçadores e todos madrastas. Ninguém é tão malvado assim; ninguém é tão bonzinho assim. Se alguém te ensinou isso, provavelmente estava mentindo. E é essa mentira que a tela preta de João César Monteiro decide desmistificar.

Ruy Gardnier