Louis Feuillade, Cinema Infinito



Os Vampiros de Louis Feuillade

Pinheiros, 12:00. Entre 3 e 5 pessoas. Esse era o estado habitual da recepção do público à obra de Louis Feuillade, realizador francês que é um marco na História do Cinema e que, paralelamente a David Wark Griffith, pôde construir uma outra gramática do filme, um cinema muito menos baseado no encadeamento narrativo do filme e muito mais forte e cheio de sutilezas.

De certa forma, todavia, não foi tanto a ignorância do público que o afastou da agradável Sala UOL, que exibiu a integridade das três séries retrospectadas. Era, desde o momento que se colocava os olhos no programa da Mostra, a crônica de uma morte anunciada: filmes com intertítulos em francês sem legendas, nenhum programa de abertura de gala (coisa que o Festival do Rio sempre faz, com muito sucesso), horários sempre vespertinos mas, acima de tudo, uma programação tão confusa que enfrentaria o ânimo do mais acirrado amante do cinema mudo: ter que esperar cinco dias para ver a continuação de uma saga, ter que esperar quatro horas para ver uma continuação programada entre dois filmes da competição internacional... ou seja, parece que foi mais para tapar buraco essa retrospectiva do que para ser vista. Mas houve quem, contrariando todas as vontades em curso, se dispusesse a descer a Cardeal Arcoverde e tomar a Fradick Coutinho par encarar a obra de Louis Feuillade.

O cinema de Louis Feuillade é famoso, antes de tudo, pelas séries de episódios realizadas para a Gaumont. Das obras que conseguiram sobreviver até nós (cerca de 80% não teve tanta sorte), constam 11 séries de episódios, realizadas entre 1910 e 1923. Dentre eles, as mais famosas séries são Barrabas, Judex, Fantômas e principalmente Os Vampiros, sua obra mais famosa e mítica. As três últimas tiveram exibição na Mostra de São Paulo, diretamente de fonte digital (DVD), com uma restauração primorosa e cheia de cuidados, mas que infelizmente pedia a magia da película para ser melhor observada (a textura do vídeo é sempre outra, além dos "fantasmas" ainda causados por uma definição de imagem ainda não completamente favorável).

Das três séries exibidas, só pude ver integralmente Fantomas (1913-14), série em cinco episódios. A magia-Feuillade pode ser definida, mas jamais explicada em sua beleza. À definição, portanto: uma hitória folhetinesca, sempre repetitiva e circular (tudo quase sempre termina como começa), a câmara sempre fixa (raríssimos movimentos de câmara, muito incomuns à época) e planos sempre muito alongados, tudo acontecendo no espaço do plano e criando o efeito do tableau vivant ("quadro vivo"), onde tudo na tela aparece devidamente em seu lugar compondo o espaço menos como depositório da ação do que como uma cristalização do tempo na tela, como uma pesquisa do instante cinematográfico. Não à toa, entre os cultores do cinema de Louis Feuillade, estão Alain Rsnais e Jacques Rivette, dois cineastas que, como o mestre, souberam utilizar a imagem cinematográfica como quadro, explodindo o movimento e colhendo o tempo.

Fantômas apresenta as aventuras (adaptadas de um famoso folhetim da época) de um jornalista e um delegado contra o poderoso Fantômas, um gênio do crime e dos disfarces que usa de chantagens e assassinatos para se apoderar sempre mais de dinheiro. A regra do filme, para falar como o juiz da televisão, é clara: trata-se de um jogo de gato e rato onde o importante não é a moral dos bonzinhos, mas antes a corrida, o jogo dos elementos e dos dispositivos. A aventura de Feuillade é bem diferente da de Griffith: à medida que o segundo cria a decupagem clássica e o suspense para dar conta dos sentimentos e das causalidades (e assim instaura a moral protestante individualista dentro do cinema), Feuillade realiza a aventura do puro movimento e inventa o plano seqüência e os tempos mortos (e assim instaura o cinema do instante e do toque). Griffith faz prosa poética enquanto Feuillade faz poesias em prosa. Mas se Griffith pede sempre uma teleologia moral (o bem vence o mal) em seus filmes, nada é mais diferente do cinema de Feuillade. Em Fantômas, depois do quinto episódio, tudo acaba da mesma forma que começa: Fantômas sairá da prisão e continuará a ser perseguido pelo jornalista bonitinho e pelo delegado bonachão).

A lógica do cinema de Feuillade é a consecução infinita: assume-se que tudo acontece simplesmente para que outras coisas possam acontecer, e não para que elas cheguem a um fim. A própria idéia de série já recusa o fim. Se suas séries duram 10, 12 episódios, é antes por uma obrigação de haver um fim: elas na verdade poderiam durar infinitamente, traçar sempre as aventuras de Judex, Musidora, Irma Vep, Grande Vampiro, Fantomas... Não é por outro motivo que os títulos dos filmes são sempre destinados a personagens de uma moral diferente. Sempre sedutores, mirabolantes e vestidos de um preto misterioso e muito cinematográfico – existe personagem de cinema mais cinematográfico que Irma Vep, um corpo todo em preto com apenas o rosto de fora? –, os heróis-título de Feuillade não são aqueles que carregam a boa moral consigo, mas antes aqueles que fazem a história continuar, antes aqueles que, mais que Sherazade, precisam não contar as histórias, mas plenamente realizá-las.

Uma pena que eu não pudesse ter acompanhado o resto das séries Judex e Os Vampiros, a primeira por minha própria culpa e a segunda por culpa da Mostra. Haviam prometido exibir diversos episódios de Irma Vep e companhia entre o dia 3 e 5 (aparentemente não houve horário para duas exibições de cada episódio), mas na hora de programarem esses dias houve um simples e sumário esquecimento da promessa. Resta a chance, todavia, de ver em breve o DVD, já que houve lançamento badalado nos estêites. Esperemos.

Ruy Gardnier