Croniquemã
Anviable
Code Inconnu, França,
2000

Juliette
Binoche em Código Desconhecido de Michael
Haneke
A propósito do cinema de Michael Haneke,
uma pergunta acima de todas se faz necessária: um cineasta que
utiliza à maravilha todos os artifícios de choque do cinema
para realizar com o espectador uma intensa experiência de sadismo
social deve ser laureado ou expurgado? Um cinema que escolhe uma estética
violenta para jogar na cara do espectador, através de personagens
caricatos e sem desenvolvimento, todas as contradições sociais
e um estado de animosidade geral da sociedade merece a maior acolha ou
o maior desprezo? Pois é nessa vontade clara de chocar a qualquer
preço que se constrói Croniquemã Anvia...
oops, Código Desconhecido de Michael Haneke. Toda uma miríade
de fatos sociais deporáveis é colocada à disponibilidade
do espectador de forma brutal e descontínua, mas não há
muita esperança de que o espectador possa fazer alguma coisa em
relaçao àquilo que ele está vendo, porque o próprio
Haneke parece que também não sabe. Daí o nome, Código
Desconhecido.
O dispositivo do filme é límpido
desde o princípio: entre cada esquete, entra rispidamente uma tela
preta que nos preparará para outro esquete. Os laços entre
os personagens vão sendo apreendidos aos poucos. Haneke mostra
o grande domínio narrativo que tem ao armar em poucas situações
um microcosmo que liga tematicamente todos os personagens. Mas é
de se perguntar se tamanho virtuosismo só não transforma
o filme numa experiência mais perigosa ainda.
Em Paris, circulam várias vidas que
se encontram: um jovem negro que não admite uma crueldade, um moleque
branco que não tem onde ficar, uma imigrante romena que prefere
mendigar na França a voltar para seu país, uma família
negra que está envolvida com problemas de criação
dos filhos e um casal de classe média bem-pensante, ela atriz e
ele fotógrafo de guerra. Esse último, inclusive, serve até
para Michael Haneke de porta-voz do seu cinema. Num determinado momento,
numa mesa de bar, discute-se o efeito dessa arte do nojo e das mazelas
do mundo. Haneke coloca numa intelectual chic a voz de seus críticos:
"o seu trabalho é só provocativo, para quê a
gente precisa ficar sabendo disso? você acha que se você não
tirar essas fotos o mundo não vai saber o que acontece?" Ao
que o fotógrafo, ou melhor, Haneke como fotógrafo, responde:
"Pode ser que você esteja certa, mas é só isso
que eu sei fazer, eu não tenho a chave de decifração
para os problemas do mundo, eu só constato os defeitos". A
partir desse momento e, impressionados pela sinceridade do testemunho,
podemos até por um minuto concordar com ele. Mas até que
ponto um filme violento que se utiliza de formas violentas pode refletir
um estado violento da sociedade? Ou ele não está apenas
reativamente regurgitando toda a miséria social-existencial que
é jogada diariamente na mídia? E acima de tudo, um cinema
que tematiza a violência pode-se deixar seduzir por ela? Pois a
encenação de Haneke é certeira sob esse aspecto:
em nenhum momento ele deixa de criar uma imagem chocante, em nenhum momento
ele poupa o espectador; ao contrário, percebe-se que ele ama profundamente
a violência, percebe-se claramente que se, por algum milagre, a
violência no mundo acabasse, Michael Haneke seria mais um cidadão
no rol dos desempregados.
Talvez o "código" do filme
seja desconhecido, mas não a sua lógica. A cena do filme
que melhor a descreve se passa logo no começo, quando uma imagem
em vídeo mostra uma Juliette Binoche desesperada e um homem atrás
da câmara dizendo que vai matá-la. O imaginário dessa
cena é o snuff movie, gênero do submundo em que se
vêem mortes ao vivo, torturas, estupros e outras experiências
bizarras. A relação que Código Desconhecido
desenvolve com o espectador é justamente essa: somos todos umas
binoches absolutamente manipuladas pela estética da violência
de Michael Haneke. Este, por sua vez, se compraz em fazer o espectador
experimentar cada impulso de seu próprio pesadelo. Michael Haneke,
então, é uma espécie de Lars Von Trier do cinema
sociológico. Mas quando o dinamarquês manipula para fazer
o público se compadecer do personagem, Haneke trabalha em sentido
oposto: mediocriza os personagens, inclusive a si mesmo, e mostra como
cada um, em sua célula compartimentada da sociedade, é culpado
pelo que acontece no mundo. Eis uma grande ironia: quando você eleva
a covardia social à enésima potência, ela passa a
ser considerada ousadia. Mas não tem jeito: a violência de
Haneke com o espectador não consegue esconder seus profundos embaraços
de rancor e ressentimento.
Ruy Gardnier
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