Ausência,
Presença e
Multiplicidade de Sentidos
(In The Mood For Love vs Time Code)


Tony
Leung e Maggie Cheung em In The Mood For Love
de Wong Kar-wai
Certezas, estabilidade, firmeza de opiniões
Tudo agora enfraquecido, frágil sinônimo de nostalgia,
ingenuidade e fraqueza... Os desejos, todos, se diluem, as intenções
parecem todas injustificáveis, os sentidos se perdem num mar de
pragmatismos e multiplicidades... O pensamento político se confunde
com a publicidade, a publicidade é pura política sem o
chão firme de suas lógicas (Verdades), os indivíduos
imergem em melancolia... Uma melancolia onde Tudo existe e, por isso mesmo,
nada parece ter Valor.
Nas artes, o individualismo criativo (após
a derrocada das ideologias totalitárias de criação)
reina como o egoísmo absoluto objeto e fonte da imaginação
humana. Cinema, Teatro e Artes plásticas se transformam em acontecimentos
desobrigados de sentidos valorizados sob a febre minimalista do não-dizer,
do não-saber, do pouco se importar. A estética é
valorizada como uma representação em-si; o belo procurado
no que é instável, inumerável, volúvel...
Estabelecido o senso de que as Verdades não passam de mentiras
bem contadas, o indivíduo está entregue a seu medo, a seu
asco absoluto por sentidos... Passa a ser perigoso acreditar nas Idéias.
O diálogo perde sua força
ante o fantasma da tolerância... O que se quer com o que se diz
passa a ser irrelevante a intenção passa a ser apenas
a de reproduzir a impostura e a indiferença. Como a reiteração
de um Mundo sem nexos, onde a louvação à diversidade
nada mais é (na grande maioria das vezes) do que mais uma forma
de se distanciar do Outro (e ignorá-lo).
No último Festival do Rio, dois filmes
em destaque na crítica, apresentaram, a meu ver, características
que bastante se associam com essa conjuntura social aclamada (ou condenada)
como pós-moderna: Time Code e In the Mood for Love.
* * *
Um homem solitário e uma mulher sozinha
(ambos casados) tornam-se vizinhos e começam a desconfiar que seus
respectivos cônjuges estão tendo um caso. Em função
dessa desconfiança, os dois se aproximam e começam um jogo
de imaginar e adivinhar como seria a relação desses dois
ausentes?...
Quando o que se espera do Cinema é
a magia da presentificação de eventos, do ilusionismo das
imagens-visuais Wong Kar Wai, esse curioso chinês, faz de seu
mais recente filme (In the Mood for Love) uma pequena obra prima
da ausência e da lacuna... As imagens não iconizam os acontecimentos,
elas insinuam o espaço extrafílmico onde toda a narrativa
central do filme (o caso de amor entre os cônjuges ausentes) se
desenvolve. Wong registra rastros, momentos panorâmicos de onde
emergem o passado, o presente e o futuro do adultério. Um filme
sobre elementos ausentes, uma superexploração dos espaços
fora-da-imagem, das elipses temporais. In the Mood
não
tem sua narrativa envolta em uma aura cristalizada de mis-en-scène
clássica. Não há ponto exato onde a narrativa se
inicie (visto que ela já estava lá desde o início
do filme), não há ponto exato onde ela se feche (visto que
nunca sabemos o que de fato ocorreu com os dois cônjuges adúlteros).
Não há condenação ou julgamento do adultério,
não se busca uma explicação lógica para o
caso. Todos os eventos são frutos das interpretações
e considerações que o casal de protagonistas-coadjuvantes
faz a respeito da relação dos protagonistas-ausentes.
As tentativas de imaginar e representar possibilidades, a angústia
de querer saber do que ainda está por vir e atualiza-lo...
Não há Verdade estabelecida
no filme, as sensações se desencadeiam baseadas nas desconfianças
e dúvidas de suas personagens. Mas como tal realidade filtrada
não é autenticada pela "objetividade" da imagem-visual,
o que o espectador tem são apenas imagens-mentais entrelaçadas
em incertezas. Nada está lá, tudo está lá.
Wong faz um filme onde as imagens projetadas são meros rastros
de eventos e realidade. Os eventos transbordam das imagens e estas, embora
sejam o fio de Ariadne que nos leva ao infinito, são apenas sombras
de um mundo de virtualidades.
De um ponto de encruzilhamento risomático,
a narrativa se desdobra em continuidades. Não há evento
absoluto, não há ato consumado. As imagens são insuficientes
para saciar a curiosidade do espectador. Construindo narrativas volúveis
de temporalidade múltipla (onde factual e imaginário se
confundem em uma sucessão de dobras), Wong faz de seu preciosismo
técnico-estético um belo filme de humanidades de um humano
do diverso e da autocriação constante.
* * *
Mike Figgis divide a tela em quatro, cria
um quádruplo plano seqüência de sucessivas ações
angustiantes... São personagens diversos, pequenos dramas convergindo
em um só espaço de ações minúsculas.
Em seu paralelismo entre as diferentes narrativas, não há
(ao contrário do que seu formato poderia sugerir) uma multiplicidade
de sentidos, mas uma acumulação de corpos perambulantes
que se ignoram. O simultâneo criado por Figgis não estabelece
uma multiplicidade emergente do evento: em Time Code, são
elementos indiferentes que se lançam numa mesma realidade confusa.
Não há diversidade da dúvida, do múltiplo
constituinte de cada caso Figgis faz uma colagem justaposta de células
que se ignoram.
Em concordância com o discurso da
diversidade como forma de tolerância através da insignificação
do Outro, Time Code não passa de mais uma ode derrotada
ao individualismo egóico contingente. O caos de Time Code
é o da acumulação de informações
uma acumulação que não transforma os elementos, mas
apenas os apresenta. Fiel retrato e fruto da ideologia do caos urbano
e da diversidade de desejos, o filme de Mike Figgis é uma frágil
ferramenta em harmonia com a fragmentação e o egoísmo.
Não há o diverso no Uno, apenas unidades solitárias
batendo cabeça com cabeça... É impressionante como,
sob a etiqueta de novidade, a firula formalista de Figgis consiga uma
mera repetição da velha tradição paralelista
do cinema norte-americano desde Griffith (atentar para a montagem do som).
Uma sucessão de "enquanto issos" que não desestabelece
a busca de uma Verdade objetiva, mas que cria uma espécie de convivência
indiferente entre diversas Verdades que se ignoram. Nessa espécie
de imparcialidade pela diversidade, busca-se um ingênuo conceito
de objetividade um conceito ultrapassado mesmo nas fileiras jornalísticas,
mas que Figgis parece acreditar ter tornado possível com sua grande
sacada... Mais uma forma de enclausurar o indivíduo na ilusão
de si-mesmo.
Aliás, Figgis vai mais longe:
Põe na boca de uma de suas personagens
uma espécie de manifesto pela não-montagem (vejam só
que genial...) como uma nova ferramenta para a captação
da Verdade na imagem... Figgis eleva o Digital ao status de revolucionário,
mas faz um dos filmes mais retrógrados dos últimos tempos:
afinal, o que leva um diretor a, sempre que tem uma nova sacada de como
filmar a realidade, se achar mais perto da Verdade do que antes de tê-la.Time
Code, tentando ser moderno, é um filme velho... Ao partir de
um estruturalismo tosco onde a técnica se sobrepõe ao sentido
(ou sentidos) do filme, Figgis pouco tem a dizer a não ser no que
se considera um retrato fiel e distanciado do mundo em que se vive. A
câmera estaria lá, o mundo acolá e nós estamos
sozinhos... A multiplicidade de Figgis não é a dos sentidos
se entrelaçando e se recriando, mas uma multiplicidade de museu,
congelada em seres inexpressivos. O múltiplo de Time Code
, embora presente na obviedade das quatro janelas, é um corpo estático.
* * *
Comparar dois filmes cujo resultado imagético
é tão diferenciado pode parecer um olhar tendencioso sobre
seus papéis na atual produção cinematográfica
e não deixa mesmo de ser. Minha intenção é
a de buscar nessa diversidade impensante de filmes, diálogos entre
obras bem diferenciadas que possam ser comparadas e postas em choque.
Todo e qualquer filme produzido num mesmo contingente histórico
terá como dialogar com outro do mesmo período e nesse
caso, considero a comparação importantíssima.
A linguagem de vídeo-clip, a produção
simples e a elevação da forma como foco de atenção,
são pontos em comum aos dois filmes. Porém, no que diz respeito
ao sentido das imagens, o filme de Wong aponta para o extremo inverso
do Time Code de Figgis: In the Mood for Love se utiliza
do belo e da forma como um através por onde se fala, e cria
uma atmosfera onde a imaginação e a potencialização
dos sentidos constroem-se através da dúvida e do incerto;
Time Code, por outro lado, desloca todo o seu valor para seu formato,
quer ser novidade, quer ser revolucionário e acaba apresentando
dilemas banais de forma banal uma multiplicidade de pequenas certezas
inabaláveis e mumificadas. A multiplicidade de Figgis é
do silêncio e da histeria, o múltiplo de Wong é do
diálogo e das relações.O respeito ao diferente não
deve passar pela definição do Eu e do Outro como independentes,
mas na percepção de que no Eu estão também
os rastros dos Outros (uma diversidade imanente do próprio Ente
ou evento).É importantíssimo diferenciarmos o através
da estética de Wong e o estético-estático
de Figgis. In the Mood for Love potencializa o gesto, Time Code
banaliza as atitudes humanas em um melodrama de folhetim.
Wong Kar Wai faz um filme onde as Verdades
não se justapõem, elas emergem borbulhantes de um mesmo
evento. Como atualizações de um mesmo corpo unificante,
In the Mood está eternamente vivo... Enquanto a Figgis...
Time Code quer aprisionar o olhar numa ilusão de estar abarcando
toda a sua diversidade. Ao tentar cercar o espectador por todos os lados
(como se nada da Verdade tivesse ficado de fora da montagem final), Mike
Figgis faz uma louvação à Presença da imagem
como seu grande mérito... E é derrotado!
Derrotado por essa impossibilidade, por
essa inutilidade latente de todos os atos que se pretendem panópticos,
de todos os atos que se querem objetivos... Na Ausência de Wong
está seu filme, está a indicação de um algo
além, de uma diversidade íntima a todo instante. In the
Mood for Love não está lá e, justamente por
isso, sua presença é múltipla...
Felipe Bragança
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