Ausência, Presença e
Multiplicidade de Sentidos

(In The Mood For Love vs Time Code)



Tony Leung e Maggie Cheung em In The Mood For Love de Wong Kar-wai

Certezas, estabilidade, firmeza de opiniões… Tudo agora enfraquecido, frágil – sinônimo de nostalgia, ingenuidade e fraqueza... Os desejos, todos, se diluem, as intenções parecem todas injustificáveis, os sentidos se perdem num mar de pragmatismos e multiplicidades... O pensamento político se confunde com a publicidade, a publicidade é pura política – sem o chão firme de suas lógicas (Verdades), os indivíduos imergem em melancolia... Uma melancolia onde Tudo existe e, por isso mesmo, nada parece ter Valor.

Nas artes, o individualismo criativo (após a derrocada das ideologias totalitárias de criação) reina como o egoísmo absoluto – objeto e fonte da imaginação humana. Cinema, Teatro e Artes plásticas se transformam em acontecimentos desobrigados de sentidos – valorizados sob a febre minimalista do não-dizer, do não-saber, do pouco se importar. A estética é valorizada como uma representação em-si; o belo procurado no que é instável, inumerável, volúvel... Estabelecido o senso de que as Verdades não passam de mentiras bem contadas, o indivíduo está entregue a seu medo, a seu asco absoluto por sentidos... Passa a ser perigoso acreditar nas Idéias.

O diálogo perde sua força ante o fantasma da tolerância... O que se quer com o que se diz passa a ser irrelevante – a intenção passa a ser apenas a de reproduzir a impostura e a indiferença. Como a reiteração de um Mundo sem nexos, onde a louvação à diversidade nada mais é (na grande maioria das vezes) do que mais uma forma de se distanciar do Outro (e ignorá-lo).

No último Festival do Rio, dois filmes em destaque na crítica, apresentaram, a meu ver, características que bastante se associam com essa conjuntura social aclamada (ou condenada) como pós-moderna: Time Code e In the Mood for Love.

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Um homem solitário e uma mulher sozinha (ambos casados) tornam-se vizinhos e começam a desconfiar que seus respectivos cônjuges estão tendo um caso. Em função dessa desconfiança, os dois se aproximam e começam um jogo de imaginar e adivinhar – como seria a relação desses dois ausentes?...

Quando o que se espera do Cinema é a magia da presentificação de eventos, do ilusionismo das imagens-visuais – Wong Kar Wai, esse curioso chinês, faz de seu mais recente filme (In the Mood for Love) uma pequena obra prima da ausência e da lacuna... As imagens não iconizam os acontecimentos, elas insinuam o espaço extrafílmico onde toda a narrativa central do filme (o caso de amor entre os cônjuges ausentes) se desenvolve. Wong registra rastros, momentos panorâmicos de onde emergem o passado, o presente e o futuro do adultério. Um filme sobre elementos ausentes, uma superexploração dos espaços fora-da-imagem, das elipses temporais. In the Mood… não tem sua narrativa envolta em uma aura cristalizada de mis-en-scène clássica. Não há ponto exato onde a narrativa se inicie (visto que ela já estava lá desde o início do filme), não há ponto exato onde ela se feche (visto que nunca sabemos o que de fato ocorreu com os dois cônjuges adúlteros). Não há condenação ou julgamento do adultério, não se busca uma explicação lógica para o caso. Todos os eventos são frutos das interpretações e considerações que o casal de protagonistas-coadjuvantes faz a respeito da relação dos protagonistas-ausentes. As tentativas de imaginar e representar possibilidades, a angústia de querer saber do que ainda está por vir e atualiza-lo...

Não há Verdade estabelecida no filme, as sensações se desencadeiam baseadas nas desconfianças e dúvidas de suas personagens. Mas como tal realidade filtrada não é autenticada pela "objetividade" da imagem-visual, o que o espectador tem são apenas imagens-mentais entrelaçadas em incertezas. Nada está lá, tudo está lá. Wong faz um filme onde as imagens projetadas são meros rastros de eventos e realidade. Os eventos transbordam das imagens e estas, embora sejam o fio de Ariadne que nos leva ao infinito, são apenas sombras de um mundo de virtualidades.

De um ponto de encruzilhamento risomático, a narrativa se desdobra em continuidades. Não há evento absoluto, não há ato consumado. As imagens são insuficientes para saciar a curiosidade do espectador. Construindo narrativas volúveis de temporalidade múltipla (onde factual e imaginário se confundem em uma sucessão de dobras), Wong faz de seu preciosismo técnico-estético um belo filme de humanidades – de um humano do diverso e da autocriação constante.

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Mike Figgis divide a tela em quatro, cria um quádruplo plano seqüência de sucessivas ações angustiantes... São personagens diversos, pequenos dramas convergindo em um só espaço de ações minúsculas. Em seu paralelismo entre as diferentes narrativas, não há (ao contrário do que seu formato poderia sugerir) uma multiplicidade de sentidos, mas uma acumulação de corpos perambulantes que se ignoram. O simultâneo criado por Figgis não estabelece uma multiplicidade emergente do evento: em Time Code, são elementos indiferentes que se lançam numa mesma realidade confusa. Não há diversidade da dúvida, do múltiplo constituinte de cada caso – Figgis faz uma colagem justaposta de células que se ignoram.

Em concordância com o discurso da diversidade como forma de tolerância através da insignificação do Outro, Time Code não passa de mais uma ode derrotada ao individualismo egóico contingente. O caos de Time Code é o da acumulação de informações – uma acumulação que não transforma os elementos, mas apenas os apresenta. Fiel retrato e fruto da ideologia do caos urbano e da diversidade de desejos, o filme de Mike Figgis é uma frágil ferramenta em harmonia com a fragmentação e o egoísmo. Não há o diverso no Uno, apenas unidades solitárias batendo cabeça com cabeça... É impressionante como, sob a etiqueta de novidade, a firula formalista de Figgis consiga uma mera repetição da velha tradição paralelista do cinema norte-americano desde Griffith (atentar para a montagem do som). Uma sucessão de "enquanto issos" que não desestabelece a busca de uma Verdade objetiva, mas que cria uma espécie de convivência indiferente entre diversas Verdades que se ignoram. Nessa espécie de imparcialidade pela diversidade, busca-se um ingênuo conceito de objetividade – um conceito ultrapassado mesmo nas fileiras jornalísticas, mas que Figgis parece acreditar ter tornado possível com sua grande sacada... Mais uma forma de enclausurar o indivíduo na ilusão de si-mesmo.

Aliás, Figgis vai mais longe:

Põe na boca de uma de suas personagens uma espécie de manifesto pela não-montagem (vejam só que genial...) como uma nova ferramenta para a captação da Verdade na imagem... Figgis eleva o Digital ao status de revolucionário, mas faz um dos filmes mais retrógrados dos últimos tempos: afinal, o que leva um diretor a, sempre que tem uma nova sacada de como filmar a realidade, se achar mais perto da Verdade do que antes de tê-la.Time Code, tentando ser moderno, é um filme velho... Ao partir de um estruturalismo tosco onde a técnica se sobrepõe ao sentido (ou sentidos) do filme, Figgis pouco tem a dizer a não ser no que se considera um retrato fiel e distanciado do mundo em que se vive. A câmera estaria lá, o mundo acolá – e nós estamos sozinhos... A multiplicidade de Figgis não é a dos sentidos se entrelaçando e se recriando, mas uma multiplicidade de museu, congelada em seres inexpressivos. O múltiplo de Time Code , embora presente na obviedade das quatro janelas, é um corpo estático.

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Comparar dois filmes cujo resultado imagético é tão diferenciado pode parecer um olhar tendencioso sobre seus papéis na atual produção cinematográfica – e não deixa mesmo de ser. Minha intenção é a de buscar nessa diversidade impensante de filmes, diálogos entre obras bem diferenciadas que possam ser comparadas e postas em choque. Todo e qualquer filme produzido num mesmo contingente histórico terá como dialogar com outro do mesmo período – e nesse caso, considero a comparação importantíssima.

A linguagem de vídeo-clip, a produção simples e a elevação da forma como foco de atenção, são pontos em comum aos dois filmes. Porém, no que diz respeito ao sentido das imagens, o filme de Wong aponta para o extremo inverso do Time Code de Figgis: In the Mood for Love se utiliza do belo e da forma como um através por onde se fala, e cria uma atmosfera onde a imaginação e a potencialização dos sentidos constroem-se através da dúvida e do incerto; Time Code, por outro lado, desloca todo o seu valor para seu formato, quer ser novidade, quer ser revolucionário e acaba apresentando dilemas banais de forma banal – uma multiplicidade de pequenas certezas inabaláveis e mumificadas. A multiplicidade de Figgis é do silêncio e da histeria, o múltiplo de Wong é do diálogo e das relações.O respeito ao diferente não deve passar pela definição do Eu e do Outro como independentes, mas na percepção de que no Eu estão também os rastros dos Outros (uma diversidade imanente do próprio Ente ou evento).É importantíssimo diferenciarmos o através da estética de Wong e o estético-estático de Figgis. In the Mood for Love potencializa o gesto, Time Code banaliza as atitudes humanas em um melodrama de folhetim.

Wong Kar Wai faz um filme onde as Verdades não se justapõem, elas emergem borbulhantes de um mesmo evento. Como atualizações de um mesmo corpo unificante, In the Mood está eternamente vivo... Enquanto a Figgis... Time Code quer aprisionar o olhar numa ilusão de estar abarcando toda a sua diversidade. Ao tentar cercar o espectador por todos os lados (como se nada da Verdade tivesse ficado de fora da montagem final), Mike Figgis faz uma louvação à Presença da imagem como seu grande mérito... E é derrotado!

Derrotado por essa impossibilidade, por essa inutilidade latente de todos os atos que se pretendem panópticos, de todos os atos que se querem objetivos... Na Ausência de Wong está seu filme, está a indicação de um algo além, de uma diversidade íntima a todo instante. In the Mood for Love não está lá –e, justamente por isso, sua presença é múltipla...

Felipe Bragança