A Última Sessão de Cinema
Alô Alô Carnaval, Adhemar Gonzaga e a Cinédia



Depoimento de Hernani Heffner,
curador do acervo da Cinédia,
na abertura da sessão de Alô Alô Carnaval


Aurora e Carmen Miranda em Alô Alô Carnaval de Adhemar Gonzaga

Por mais que a gente conheça a trajetória da Cinédia, a trajetória do Adhemar Gonzaga, eu acho que sempre é possível a gente descobrir alguma informação nova, descobrir um olhar novo, uma maneira nova de lidar com essas informações que vão ficando pelo tempo e que com que a gente vai criando uma certa familiaridade. Eu, particularmente, penso que em relação à Cinédia – sua trajetória, seus filmes, aquilo que ela representa esteticamente – sempre é possível encontrar novas informações, novas questões, sempre é possível elaborar um pensamento novo. Isto porque na verdade eu acho que este evento chamado Cinédia ainda é muito mal conhecido, apesar dos seus 70 anos. Ele é mal conhecido porque, na verdade, houve muito pouco contato com a sua trajetória, propriamente dita, houve muito pouco estudo dos meandros da companhia, dos fatores que geraram a companhia, houve muito pouco estudo da quantidade enorme de filmes que ela produziu.

Eu acho que um dos fatores que marcam a Cinédia de uma forma mais profunda é a diversidade de propostas que a companhia apresentou ao longo desses 70 anos. Essa diversidade ela é muito mal percebida, na verdade, quase sempre quando a gente fala alguma coisa sobre a Cinédia, a gente está entrando em contato com uma idéia de que ela foi um marco do cinema industrial brasileiro, que ela foi uma marco de um cinema basicamente de estúdio, um cinema feito entre quatro paredes, que ela foi basicamente um marco de um cinema que mesclava ambições artísticas e um interesse de alcançar o mercado. Eu não sei se é exatamente isso – pode haver algumas dessas características ao longo da trajetória da companhia, mas eu não sei se é exatamente isso. E talvez o Alô Alô Carnaval seja um bom exemplo do tipo de questão que atravessa a história da companhia. A imagem que a gente tem presente do filme é quase sempre a de um filme popular, precursor da chanchada, que tem um conjunto extraordinário de números musicas e que, digamos assim, teria sinalizado um tipo de filme que era possível dentro de uma conjuntura de mercado bastante adversa aqui no Brasil – ou seja, o cinema estrangeiro dominava o mercado e os primeiros passos do cinema sonoro não indicaram um tipo de filme que tivesse uma aceitação suficiente para poder sustentar, entre aspas, "uma indústria". Quando o Alô Alô Brasil, e muito mais que ele, o Alô Alô Carnaval, fazem um sucesso que é considerado estrondoso para a época, você teria descoberto, digamos assim, um primeiro possível produto de mercado para o cinema brasileiro.

Eu acho que essa visão, ainda que correta, ela é insuficiente para dar conta do tipo de problema que o Adhemar Gonzaga enfrentava naquele momento. Ele, quando criou a Cinédia, em 1930, ele vinha no bojo de um movimento bastante amplo, bastante complexo em termos ideológicos, políticos, econômicos, práticos, na maneira de fazer cinema, e que trazia embutido dentro desse movimento uma questão bastante complexa que era "o que se quer fazer com cinema no Brasil?". Qual é objetivo de fazer cinema? É fazer cinema por que todos gostam de cinema, todos se deleitam com o espetáculo cinematográfico, ou se quer algo mais do que isso? Na verdade, o Gonzaga teve uma formação insuficiente – ele largou a faculdade, ele não se interessava pelos, ele ia ser engenheiro – e ainda que tenha largado a faculdade, ele se deixou perpassar por algumas discussões características da república velha, e ele tinha uma certa simpatia por algumas idéias, alguns conceitos, algumas formas de olhar, de matiz positivista. Isso, na verdade, gerou uma coisa nele que é extremamente importante, que é o nacionalismo – o Gonzaga é convictamente um nacionalista. O que significa o quê? Significa tentar criar não só uma cultura de características essencialmente brasileiras, ainda que esse seja um conceito bastante problemático, mas mais do que isso, tentar dar ao próprio país uma condição de desenvolvimento que fosse gerada internamente.

Agora, esse matiz nacionalista, ele era discutido lá por volta das década de 10 e 20, na forma de um conflito: era o famoso conflito entre os adeptos do ruralismo, os adeptos do pensamento do Alberto Torres, que não por acaso é um dos matizes principais desse veio nacionalista; e por outro lado os adeptos do cosmopolitismo, ou seja, de um intercâmbio cultural que se faz no interior. O principal grupo que representaria esse cosmopolitismo justamente os integrantes da Semana de Arte Moderna de 22. Ele se debate entre essas duas posições ideológicas não de uma forma muito consciente, mas de uma forma participante: quem lê, por exemplo, com cuidado os textos que aparecem na revista Cinearte – que foi e criada por ele, e dirigida por ele durante muito tempo – vai perceber que a revista se posiciona contra qualquer tipo de produto que não seja criado aqui. E criado em toda sua extensão: ou seja, desde os insumos básicos, desde as máquinas, as matérias-primas e etc., até o produto final. Ora, isso é uma grande contradição. Porque fazer cinema significava importar quase tudo, desde filme vigem até máquinas para revelar.

Ele na verdade tinha consciência desse problema, chegou a escrever uma vez sobre isso, mas resolveu o problema da forma possível, ou seja: já que não há com resolvê-lo praticamente, ultrapassa-se esse problema e vamos para a realização prática. Isso vai adentrar os filmes dele, vai adentrar o projeto dele, o projeto de criação de uma empresa pudesse sustentar a realização cinematográfica de forma contínua. Ele acredita que a base do desenvolvimento do país é a industrialização – não só a industrialização cinematográfica, mas de uma maneira geral. Industrialização na cabeça dele significa produção contínua de bens, por isso ele tem a idéia de fazer filmes numa quantidade cada vez maior para dar conta de um mercado que ele acreditava, ingenuamente, naquele momento, início dos anos 30, que se reverteria a favor dos brasileiros. Esse projeto adentra os filmes e gere uma tensão nos filmes, que ele produziu ou que ele dirigiu, de uma forma bastante peculiar.

O Gonzaga foi acusado durante muito tempo ser uma pessoa que teria incorporado uma estética, uma temática, do filme americano, do filme de classe média americano, e que isso se incorporaria dentro da construção diegética através de cenários, roupas, a extração social dos personagens... esse tipo de coisa. Na verdade, embora não exista mais o Barro Humano, o pouco de informação que a gente tem sobre o filme nos dá a parecer que ele está trazendo esses elementos para fazer uma crítica a esses elementos e fazer um contraponto. Os personagens principais são de classe média, são as heroínas do filme, e elas vão se contrapor aos personagens de extração burguesa e que são bastante mal caraterizados no sentido de que sobre eles recaem as características negativas da narrativa. Barro Humano é um filme de mulheres, na verdade quatro mulheres: as personagens da Gracia Morena e da Lelita Rosa, que são as moças pobres; e as personagens da Eva Schnoor e da Eva Nil, que são as personagens ricas. As personagens ricas, na verdade, elas não buscam nada, elas não têm perspectiva de vida, elas não querem formar nada, ao contrário das personagens pobres, que têm uma ambição, que têm um objetivo e que buscam esse objetivo, claramente. E são dois grupos que se defrontam.

Esse tipo de tensão ele vai carregar para dentro do projeto da companhia, e no projeto da companhia isso vai sofrer uma transformação muito interessante. O Gonzaga, no início, ele tem ambições estéticas, artísticas, e ele acredita que a arte inclusive seria o selo de qualidade para esse produto industrial que ele está tentando criar. Por isso, fazer filmes, no início da Cinédia, é fazer filmes com o máximo de qualidade artística possível. E isso tentando reunir todas as pessoas que tivessem essa capacidade, essa possibilidade, que pudessem contribuir nesse sentido. Esse projeto, que a rigor engloba o Barro Humano, perpassa o Lábios sem Beijos e o Mulher, ele se interrompe com o Ganga Bruta. É um projeto que não dá sustentação econômica à empresa. E por não dar essa sustentação, o projeto inteiro precisa ser repensado.

Nem o Gonzaga, nem seus colaboradores naquele momento, têm muito apreço pelo que eu chamaria de filme popular propriamente dito. Ou seja, não têm muito apreço por um tipo de filme que fosse buscar nas fontes da cultura popular tal como estava dada naquele momento os elementos para a criação de um filme que tivesse, efetivamente, uma identificação maior com a população. O próprio Gonzaga deixou relatos: por exemplo, ele não queria muito que o nome dele fosse associado a um filme como o Alô Alô Brasil, apesar de ele ter co-produzido. Ele só assumiu A Voz do Carnaval porque o Humberto Mauro também não tinha nenhum apreço por esse tipo de cinema e largou o filme. E o fato de ele ter dirigido o Alô Alô Carnaval é um fato é quase que um mero acaso. Eu disse quase, não é um acaso. O filme ia ser dirigido pelo Wallace Downey, que era o parceiro dele nessas empreitadas, que foi a figura que investiu mais diretamente nesse tipo de popular, mas já nesse momento o Gonzaga já está refletindo sobre o quê que é isso, e sobre quais são as possibilidades que esse tipo de cinema traz. E como esse tipo de cinema se encaixa na proposta maior dele de gerar essa produção contínua, se encaixa na proposta maior dele de gerar produtos com características essencialmente brasileiras. E para ele, curiosamente, esse tipo de produto ainda não é um filme caracteristicamente brasileiro, ele encara esse tipo de produto como sendo um filme caracteristicamente americano. Na verdade, o que o Downey estaria reproduzindo aqui seria os inícios do cinema sonoro americano, os Broadway Melody da vida.

O Gonzaga tem uma desconfiança em relação a isso, e ele começa a refletir em como transformar esse produto num produto essencialmente brasileiro. Ele cunha uma expressão bastante curiosa, ele diz que a Cinédia está modificando sua linha de produção e agora vai realizar filmes de características transnacionais. Parece que ele está saltando do Brasil para fora, e na verdade está fazendo o caminho inverso. Ele está tentando pegar um esquema de produção, um esquema estético, que não é caracteristicamente brasileiro – muito pelo contrário, tem uma matriz muito definida dentro da história do cinema, que é uma matriz americana – e está tentando associar isso a elementos brasileiros. Pelo que se conhece, e se conhece muitíssimo pouco, tanto o Alô Alô Brasil quanto o Estudantes são filmes que teriam basicamente só a apresentação dos números musicais. São filmes que teriam uma espécie de mestre de cerimônias, no Alô Alô Brasil foi feito pelo Jorge Murad, e eu tive a oportunidade de conversar com ele, que me disse que o filme era basicamente isso: ele chegava e introduzia ou o cantor ou o malabarista ou o sujeito que ia contar uma piada e etc., nada alem disso. Ou seja, é a síntese total desse tipo de proposta. O que o Gonzaga vai fazer a partir do esboço de roteiro do Braguinha e do Alberto Ribeiro, no qual ele interferiu – e ele interferia muito nos filmes ou que ele dirigia e que não tinham roteiro dele, ou mesmo que ele produzia, ele criava algumas cenas para introduzir dentro desses filmes – o que ele vai fazer com esse esboço é criar uma tensão. Ou, na verdade, recuperar uma tensão que existia lá no início do projeto. E essa tensão é justamente entre o nacional e o estrangeiro, entre o que é caracteristicamente brasileiro e o que é cosmopolita.

A gente costuma ver o Alô Alô Carnaval basicamente pelos números musicais, que são esplendorosos, fantásticos, um grupo de artistas extraordinário que marcou a história da música brasileira, e a gente esquece um pouco aquele fiapo de historinha que está lá por trás. Só que esse fiapo de historinha é um fiapo bastante interessante para a gente refletir sobre o que está acontecendo dentro desse filme. Esse fiapo de historinha é justamente sobre dois artistas pobres, brasileiros, que estão tentando montar uma revista, ou seja, um produto artístico, não conseguem porque eles mesmos não têm dinheiro e porque os empresários que detém o capital não estão interessados num produto brasileiro. O empresário, que é feito pelo Jayme Costa, ele na verdade está contratando uma trupe estrangeira, que inclusive vai apresentar um espetáculo de altíssimo nível, um espetáculo de caráter erudito. E a arte erudita é basicamente uma arte estrangeira, especialmente nesse momento, década de 30. O entendimento popular disso recai nesses dois pólos, e vai ser um "acaso", entre aspas, que vai dar a oportunidade a esses artistas de tentar montar a sua revista. E aí vai se expressar talvez uma incapacidade inicial deles realizarem plenamente esse objetivo artístico, mas ao mesmo tempo vai mostrar que, apesar das dificuldades, há alguma coisa a apresentar, e dentro dessa alguma coisa há alguma coisa de destaque. A gente não pode esquecer que não é só os números propriamente cômicos, mas o que a revista dos dois artistas pobres inclui, os artistas populares que irão cantar: toca-se a música erudita com um Mário Reis, Francisco Alves...

Isso não foi percebido na época, e raramente é discutido hoje em dia, mas eu acho que é um aspecto importante daquele tipo de cinema que o Gonzaga tentou desenvolver ao longo da sua carreira, e tentou matizar dentro do projeto da Cinédia. Esse projeto, inclusive, vai transbordar para um cinema que está associada a uma figura hoje um tanto esquecida, que é o Luís de Barros. A gente tende a olhar a figura do Luís de Barros como sendo uma figura folclórica: o diretor que mais filmes fez na história do cinema brasileiro, o que fazia mais rápido, que cortava o negativo ou que não se detinha por obstáculo nenhum etc., mas na verdade os filmes que o Luís de Barros faz na Cinédia carregam esse tipo de discussão, carregam esse tipo de tensão, e realizam de uma forma bastante eficiente esse cinema popular propriamente dito. A ponto de, ao longo dos anos 40, exceção feita ao Moleque Tião, os outros filmes da Atlântida, de caráter mais popular, ou seja, o chamado filme carnavalesco, eram filmes que não conseguiam obter um retorno tão esperado, e ao mesmo tempo os filmes do Luís de Barros, que não tinham aparentemente nenhuma pretensão, conseguiam fazer um sucesso extraordinário. E desses filmes eu destacaria dois que eu considero emblemáticos.

O primeiro deles é um filme chamado Berlim na Batucada, de 1944, e que tem uma pretensão extraordinária: fazer uma crítica à passagem do Orson Welles pelo Brasil. Inclusive porque o Luís de Barros ficou muito chateado com o Orson Welles. O Welles chegou a contratar o Luís de Barros, ele construi um cenário no Teatro Municipal para uma seqüência do It’s All True, e esse cenário, segundo o Luís de Barros, foi muito mal aproveitado e etc. E ele, na verdade, não viu com bons olhos a presença do Welles aqui. Por que? Porque não seria a maneira de um brasileiro ver o seu próprio país, é um estrangeiro vendo o país, e isso nós não podemos aceitar, nós, Gonzaga, nós, Luís de Barros, nós, todas as pessoas que estão envolvidas nesse tipo de processo. Então o filme praticamente tripudia da presença do Welles aqui e mostra que, digamos assim, o que ele na verdade vai apresentar ao fim e ao cabo é o que os próprios brasileiros constróem para ele, que é dentro do filme a figura do Procópio Ferreira e a figura do Francisco Alves.

O outro filme é Caídos do Céu, que efetivamente dá um passo adiante e se volta para a própria realidade brasileira, para a discussão do espaço que os espectadores estão inseridos. O filme passa uma premissa bastante curiosa: um sujeito morre, vai parar no céu, que é uma imensa repartição burocrática – já dando conta da presença bastante expressiva da máquina estatal, do Estado dentro da vida brasileira – e ele diz que ele não devia estar ali. E aí não conseguem encontrar o nome dele na lista de mortos e o diretor da repartição do céu manda investigar o que está acontecendo: ele manda dois anjos à Terra. Esses dois anjos faleceram no início do século 19, e o que eles vão proporcionar é, digamos assim, é um distanciamento em relação aos costumes, aos hábitos, às inovações que a vida moderna trouxe para esse meio ambiente, e vão mostrar o quanto esse meio ambiente se transformou daquela vida, digamos, outrora pacata, que nós tínhamos como um ideal de vida para uma cidade esplendorosa como o Rio de Janeiro. Ou seja, o filme se volta efetivamente para o impacto de uma série de produtos, de uma série de tecnologias, de uma série de novos comportamentos no lidar com o dia-a-dia, que é proporcionada não mais pela cultura brasileira propriamente dita, não mais pelo país, mas pelo que vem de fora. Isso demonstra esse distanciamento.

Eu acho que a gente pode assistir ao Alô Alô Carnaval um pouco com esse olhar, um pouco procurando também entender qual é o mistério que está por trás disso tudo, que é um filme que é considerado um clássico, que é considerado encantador, até hoje, mas que tem uma simplicidade na fatura que não dá conta desse encanto. Então a gente poderia procurar o que gerou e o que sustenta esse encanto até hoje.

Hernani Heffner