Edward Yang contra o
(pior) cinema contemporâneo



Wu Nianzhen e o pequeno Yang Yang em Yi Yi de Edward Yang

O cinema digital, pelo que podemos ver nesse último Festival do Rio, teve a função desastrosa de recuperar um tipo de intervenção artística que há muito não tinha a cara-de-pau de aparecer no terreno da arte: o cinema como olho no buraco da maçaneta. Esse olho deseja mostrar tudo o que há de sórdido, de imostrável, tudo o que há de assemelhado à "realidade nua e crua" dos programas exploratórios de televisão (documentários sobre drogas, prostituição, atrocidades, corrupção, crimes bárbaros). No Festival, todo o cinema digital que se quis fazer como olho do imostrável apelou para um gênero documentário bastante recente, o falso documentário: a câmara é a todo momento tremida, retirada de lugar, para dar mais veracidade à imagem e seduzir o espectador pela audácia e precariedade da situação.

Os temas são ácidos: vida sexual dupla propiciada pela internet, estrelato a qualquer preço, revolta feminina contra violência masculina, fecundação de britânicas para re-argentinizar as Ilhas Malvinas, etc. O único desses filmes que não mantém com o espectador uma ilusão de realidade (apesar de acentuar o realismo pela completa falta de mestria de equipamento) é Baise-Moi, filme pseudofeminista tendência Thelma & Louise da geração Beavis And Butthead. Mas o que é constante em todos esses filmes é a profunda necessidade de mostrar. Em todos esses filmes, vemos cenas constrangedoras, em que gostaríamos de esganar o documentarista que se mete assim na vida privada das pessoas. Quanto a nós, espectadores, sentimos um prazer por não sermos culpados pela invasão da privacidade e ao mesmo tempo fruirmos das revelações dessa invasão. Em Gente Famosa, a atriz principal briga com a família, com seu melhor amigo e a gente vê tudo. Em @mor Virtual, o japonês tem sua vida revirada pela entrada da documentarista, igualmente para o professor que deita-se com suas alunas, tira fotos e expõe-as todas à internet. Fuckland é, de longe, o melhor desses filmes, por num determinado momento romper o laço antigo de aliança com o espectador pela ilusão e realizar um corte ficcional na cena mais forte do filme. Mas mesmo assim o falso documentário não convence.

Poderíamos, a título experimental, conceder um título à condição da figura do falso documentarista: a condição Gale Weathers, aquela jornalista da série Pânico que deseja revelar toda a verdade oculta, mesmo que isso signifique acabar com a vida das pessoas que a rodeiam. Trata-se de um personagem, porque as cenas são construídas, mas aquilo que aparece à tela tem o mesmo efeito. Afinal, um mau comportamento na tela não é menos mau do que um comportamento da vida real. Essa condição Gale Weathers de realização de grande parte dos filmes de hoje (não só os documentários, mas também as ficções oniscientes do cinema americano recente, assinadas Neil LaBute, Paul Thomas Anderson ou Todd Solondz) reduz o espectador ao simples papel de voyeur, mero lacaio do cinema passivo de exploração fetichista, que recebe de outro (do diretor) toda a figura da moral, sem necessidade de julgamento da parte do espectador. Esse só vê.

Yi Yi, de Edward Yang, é a antípoda desse cinema: a câmara não julga, apenas observa; a história não conclui, apenas exibe; e, antes de tudo, mais faz desaparecer do que revela. O dito segundo o qual a arte é grandiosa não por mostrar mas por esconder é perfeitamente adaptável ao cinema de Edward Yang: todos os lances capitais são mostrados em planos abertos, não só por respeitar a privacidade dos personagens (afinal todos ficcionais), mas antes de tudo por uma disposição fundamental do papel da arte e do pensamento, que é o de problematizar acima de tudo, acima até de responder. Em Yi Yi, o cinema de ficção é documental. O artista é um observador interessado, nada mais – nenhuma demiurgia, nenhum paralelo entre a câmara e a voz de Deus (aquilo que mais desagrada em Magnólia, pois a hora dos sapos é justamente quando Deus como cineasta decide que é o momento de jogar as pragas aos humanos). A visão do cineasta se confunde com a visão da jovem Ming-ming ao ver sua amiga com um namorado, do alto de seu prédio, ou com o menino Yang yang, de oito anos, que fotografa mosquitos no corredor (as fotos só mostram o vazio, entretanto) para se fazer acreditar.

Yi Yi tem a pior tradução de título dos últimos anos. Vê mal o filme quem acha que Yi Yi fala sore "as coisas simples da vida". "Yi Yi" quer dizer "um depois o outro", ou "1+2", como é o nome da produtora. O nome dá, sobretudo, a idéia de consecução, da necessidade de uma segunda visão contraposta à primeira. Trata-se de um título conceitual, que dá a possibilidade de visualisar o próprio filme como obra conceitual – e não como crônica de uma família, o que Yi Yi definitivamente não é. A figura de "yi yi" no filme é Yang yang, que fotografa as costas das pessoas para fazê-las compreender seus dois lados (antes, Yang Yang perguntara a seu pai sobre os dois lados da verdade, o lado da frente e o lado de trás, e como seria possível falar da verdade se só vemos metade dela). É nesse "lado de trás da verdade" que Yi Yi se distingue dos filmes oniscientes. Como cineasta, Edward Yang não acredita na capacidade de uma câmara (e no cinema a câmara designa o papel de uma consciência) para dar uma resposta ao mundo. Esse lado de costas, Yang sabe que a câmara também tem um. Não adianta trazer a verdade nua e crua à tela: essa é a única maneira em que ela é mais excluída ainda. A única maneira da câmara conseguir registrar um e depois o outro é fazer como faz Yang em Yi Yi: distanciar-se, observar, colocar um vidro entre a observação e seus objetos, mostrá-los de longe.

Um registro assim tão aparentemente documental não acabaria com o fator artístico, que sempre representa um certo aspecto de manipulação – e do qual Lars Von Trier seria um digno representante, logo, mais artista? Não, ao contrário. A arte de Edward Yang nos permite não identificar espectador e personagem. Ela identifica o espectador a situações, permite que ele extraia uma significação independente do trabalho do cineasta. Yi Yi mostra como a arte, ainda se mantendo nos limites da ficcionalização, é documental e pode dar conta de uma totalidade sem totalizar a moral, sem brincar de Deus e manter uma relação de igual para igual com o espectador. É certamente um cinema maior, de coração mais aberto. Um cinema da dignidade contra o cinema mistificador das ficções oniscientes e dos falsos documentos. Como o cinema de Eduardo Coutinho, Hou Hsiao-hsien e Abbas Kiarostami, baseia-se numa relação com o cinema que exige do espectador alguma reação ou o completo marasmo. Um cinema do conceito (e há diversas demonstrações filosóficas em Yi Yi, todas belíssimas, e a beleza conceitual perdoa a auto-indulgência) que se expressa em termos de cinema. Yi Yi representa um ideal de cinema que expressa a inteligência em termos sensíveis. Faz filosofia ao viver. Viva Yang.

Ruy Gardnier.