Vidas
,
de Alain Cavalier
Vies, França,
2000
O filme de Cavalier jamais poderá
ser analisado por si só, pois é importante contextualizá-lo
no momento da expansão cada vez maior da produção
digital, e portanto da definição de fronteiras e propriedades
da estética e da ética deste mais recente modo de produção.
Assim que fica bem difícil perceber hoje o tamanho da importância
que possa ter o filme no futuro.
O fato é que Vidas é
uma proposta radical de cinema, do tipo que faz o público gritar:
"Mas isso não é cinema!!" O que é sempre
positivo, pois cria a mencionada discussão sobre as fronteiras
da linguagem. No que consiste exatamente o filme? Ele se divide em 4 segmentos.
No primeiro, vemos o último dia de trabalho de um cirurgião
oftalmologista num hospital. No segundo, acompanhamos o processo de criação
de um artista plástico. No terceiro, um açougueiro explica
sua trajetória ao entrar na profissão. Por último,
uma mulher que trabalhou com Orson Welles em seus últimos anos
nos guia numa visita à sua última casa, hoje abandonada.
Os 3 primeiros segmentos são uniformes
na idéia de retrato do cotidiano de pessoas comuns. Mais do que
o mero documentário, muitas vezes parecem um "home video".
Este é o grande tapa na cara de Cavalier na platéia: ela
paga seus R$8 e vai assistir um "home video". Mas, por quê?
Aí sim a importante conceituação: para Cavalier nada
seria mais material para o cinema do que a vida. Então, se o digital
nos permite gravar horas e horas sem grandes planejamentos, apenas registrando
o mundo, isso é cinema também. Todos são assunto
e material cinematográfico em potencial, parece afirmar Cavalier.
E não há como discordar dele, especialmente não há
como não pensar nisso e no que representa como desafio futuro.
Seu olhar é essencialmente curioso, humano, terno, com seus personagens.
Ele realmente está fascinado pelo que possa parecer banal. Um único
senão é o pouco tempo dado ao açougueiro se comparado
aos outros dois, num segmento que acaba parecendo bastante abrupto e desigual.
Mas, o golpe de mestre de Cavalier está
no quarto episódio. Quando parece que ele defende como via de regra
um tipo de produção documental e caseira como sendo a seara
do digital, que tem por característica principal a captação
de um "real", ele subverte isso tudo. No quarto episódio
nós nunca chegamos a ver nada. Pois ele se baseia em memórias
de um local abandonado. A câmera passeia pela casa em ruínas
e a voz da mulher nos guia pelo passado. Vamos reconstituindo cada imagem
pelo que ela nos diz. É uma mágica viagem que une passado
e presente, imagem e som, e principalmente, e talvez o mais importante,
realidade e fantasia. Pois, bem ao gosto de Orson Welles, não se
pode dizer o quanto há de verdade ou de mito no que a mulher nos
narra. Podemos acreditar ou não naquilo. Aqui, neste momento, está
a grande virada de Cavalier, que joga por terra qualquer certeza do poder
do digital. O seu "look" mais realista pode criar ilusões
e sonhos do mesmo jeito, parece dizer. E assim, ele finaliza o que talvez
não seja o mais perfeito filme digital até o momento, mas
certamente o que mais explora e expande as possibilidades de discussão
do meio.
Eduardo Valente
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