Treze
dias viajando pelas telas


Chunhyang,
de Im Kwon-Taek (Coréia do Sul)
O cinema,
como já foi dito, é o lugar ideal das experiências
partilhadas. E os melhores festivais – como painel amplo e diversificado
de filmes que são, entre eles o Festival do Rio BR – se apresentam
como um campo de batalha ainda possível pela abertura de novos
horizontes. Eis o intercâmbio cultural: durante as duas semanas
que vão de 6 a 18 de outubro serão exibidos cerca de 400
filmes realizados dentro das mais variadas tendências e que chegam
de todas as geografias. Pois reunir expressões de diferentes contextos
culturais não deve ser um processo que se encerra em si mesmo,
mas que tem suas resultantes – uma reunião sempre é (ou
ao menos deveria ser) uma alavanca de interação e de novas
idéias. E, ao que parece, esse Festival do Rio BR será uma
oportunidade única de diálogo com um cinema mundial que,
apesar de tudo, consegue manter sua vitalidade. Porque se a etiqueta já
foi boa no ano de estréia do evento, na segunda edição
do festival a seleção de filmes promete ser ainda melhor.
E qual
cinema hoje tem sido mais moderno, mais arejado de idéias, mais
interessante aos olhos do espectador aberto a novos projetos que o cinema
oriental? Não é outra coisa que se vê nos festivais,
que se lê nas principais revistas: o sopro de renovação
parece mesmo vir do leste. Esse ano, o cinema oriental – outrora preterido
ou até esquecido pelos curadores – dá as caras novamente,
mas dessa vez como convidado intrusão que promete roubar a festa.
A mostra Ventos do Oriente, aparentemente uma pequena mostra paralela
de divulgação de alguns filmes da China, Japão, Taiwan
e Coréia, apresenta as maiores promessas do Festival. A amostragem,
dessa vez, é bastante significativa. E não apenas em números
(são 16 fitas), mas – e o que é mais importante – em diretores
de relevo. O cinema japonês, cada vez mais interessante, marca presença
com alguns belos exemplares, a começar pelo último e polêmico
filme do veterano Nagisa Oshima, Tabu (com "Beat" Takeshi
Kitano no papel principal). A linha de frente japonesa inclui ainda Kiyoshi
Kurosawa: cineasta virtuoso com mais de 20 anos de carreira, será
pela primeira vez exibido no Brasil com Carisma, que vem rendendo
elogios desmesurados mundo afora. Completando as muitas expectativas,
vale conferir Eureka, de Shinji Aoyama, prêmio da crítica
em Cannes este ano. E o que dizer da China? Depois da explosão
cinematográfica do Irã no começo dos anos 90, a China
vem sendo o celeiro artístico dos diretores mais importantes do
cinema contemporâneo. Da China continental vem 17 Anos, filme
de Zhang Yuan que narra de forma seca e econômica o tema do perdão
familiar. De Taiwan, Edward Yang apresenta Yi Yi – As Coisas Simples
da Vida, que ganhou o prêmio de direção em Cannes/2000.
Stanley Kwan, outro conceituado diretor de Hong Kong jamais exibido no
Rio, aporta na baía com Contos da Ilha, co-produção
com o Japão. In Kwon Taek, o mais célebre cineasta da Coréia
do Sul, vem com Chunhyang, filme que rendeu grandes elogios por
onde já passou. Depois do comovente Felizes Juntos, Wong Kar-wai
apresenta In The Mood For Love, filme que causou celeuma em Cannes
por ter sido apresentado sem título e não em sua versão
final (os cariocas assistirão à versão definitiva).
E, fechando o que de melhor há na seleção oriental,
não se pode esquecer do vietnamita Trah Anh Hung (diretor de O
Cheiro do Papaia Verde e do ótimo O Ciclista), que volta
às telas da cidade com As Luzes de um Verão.
E como
os tempos mudam, muda o cinema também. Outra incorporação
nova do Festival do Rio desse ano é a mostra exclusivamente dedicada
à recente produção digital. As facilidades de filmar
em DV (digital video) e a incrível redução dos custos
estão fazendo a cabeça de diversos cineastas. A produção
digital, como é sabido, dá uma liberdade enorme ao cinema,
possibilita novas experiências e novas sensibilidades. É
claro, com isso chegam também as grandes bobagens, mas que arte
pode se ver livre disso? O mergulho dentro do mundo digital pode trazer
grandes picaretagens (como Gente Famosa, dirigido pelo ator Griffin
Dunne, de Depois de Horas) ou experimentos memoráveis (como Dançando
no Escuro, de Lars Von Trier ou No Quarto de Vanda, de Pedro
Costa). E exercícios que são grandes incógnitas (esperemos
para dizer), como Time Code de Mike Figgis. Claude Miller e Barbet
Schroeder, diretores com alguma estrada, também fazem suas apostas
no cinema digital com, respectivamente, De Mulheres e de Mágica
e Nossa Senhora dos Assassinos – este último, ao que
parece, uma bela promessa.
Quanto
à memória do cinema, ou seja, às retrospectivas de
cineastas, se nesse ano elas não se faz presentar por nomes do
panteão cinematográfico da estirpe de John Cassavetes e
Andrei Tarkóvski, dessa vez os ciclos têm como tema a contestação
esquerdista na Europa. Gillo Pontecorvo e Ken Loach são dois cineastas
nos quais a temática humanista está sempre presente. O italiano
Pontecorvo – hoje, com mais de 80 anos, na direção do Festival
de Veneza – é mais conhecido por duas produções dos
anos 60, Queimada e A Batalha de Argel, filmes que ficaram
para a história como reconstituições perfeitas e
secas das lutas políticas. Já Ken Loach, mais conhecido
dos cinéfilos cariocas depois de Terra e Liberdade, aporta
com alguns de seus filmes rodados nas décadas anteriores, dos quais
o mais bem comentado é Kes, feito em 1969. Na retrospectiva
nacional, o cineasta escolhido foi Paulo Cezar Saraceni, um dos iniciadores
do cinema novo em 1959, com o curta Arraial do Cabo. Depois, o
diretor realizou exatos dez longas em quarenta anos de carreira, sendo
o foco principal as adaptações literárias do escritor
Lúcio Cardoso (Porto das Caixas, A Casa Assassinada,
O Viajante). Mas a retrospectiva mais esperada do grande público
é dedicada a John Waters, ícone do cinema pop americano.
Mistura saudável entre cool e trash, o cinema de Waters agrada
e incomoda pela naturalidade com que coloca na tela criaturas tão
bizarras quanto o travesti Divine, em filmes que são tornaram famosos
como Pink Flamingos, Female Trouble e Polyester.
Seu último filme, Cecil B. Demente, é uma visão
ao mesmo tempo brincalhona e nostálgica do velho cinema americano,
mais aventureiro e menos caça-níqueis que o de hoje. E se
os tradicionais – e particularmente esperados – Tesouros da Cinemateca
não foram reeditados este ano, a compensação para
o público parece vir no ciclo Restauração, com quatro
pérolas em cópias estalando de novas: Aviso aos Navegantes,
do chanchadeiro Watson Macedo; O Padre e Moça, o belo cine-poema
de Joaquim Pedro de Andrade; Janela Indiscreta, clássico-mór
de Alfred Hitchcock; e o imperdível Alô, Alô, Carnaval,
de Adhemar Gonzaga (ao que parece, com o final original, que é
diferente do que vinha sendo exibido nos últimos anos).
Outro
ponto alto do festival é a presença de uma Première
Latina – o que não deixa também de ser uma bela surpresa,
já que de uns tempos para cá o circuito de cinemas adotou
o péssimo costume colonizado de ignorar os filmes de nossos vizinhos
que não sejam do norte. Entre os latinos, pelo menos três
fitas merecem a atenção: Lista de Espera, do cubano
Juan Carlos Tabio, Do que Esqueço Não me Lembro,
assinado pelo argentino Juan Carlos Rulfo; e o vencedor do prêmio
de melhor filme no último Festival de Gramado, o peruano Pantaleão
e as Visitadoras, de Francisco Lombardi. Mas as premières "americanas"
não se encerram por aí: incrementando a luta contra o cinema
róliudiano, vem a sempre presente Première Brasil
– este ano não tão promissora quanto em outras edições
do festival, mas que ainda assim traz armas poderosas, como Tolerância,
primeiro longa de Carlos Gerbase depois de um bom período de militância
no curtametragismo, e O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas
Sebosas, documentário de Marcelo Luna e Paulo Caldas. As mulheres
também confirmam sua presença – cada vez mais forte – no
cinema nativo com os filmes de Lúcia Murat, Brava Gente Brasileira;
Laís Bodanski, Bicho de Sete Cabeças; e Tetê
Moraes, O Sonho de Rose – 10 Anos Depois. E do outro lado do front,
a Première Americana também ataca com pelo menos uma grande
fita garantida, o último tour de force de Clint Eastwood:
Caubóis do Espaço; e uma outra da qual se pode esperar
algo: Eu, Eu mesmo & Irene, dirigida pelos irmãos Bob
e Peter Farrely e intepretada por Jim Carrey – que em O Mundo de Andy,
para surpresa geral, já provou ser um grande ator.
Voltando
ao cinema internacional, dá para perceber que, ao menos no terreno
dos filmes, o mundo vai muito bem, obrigado. Ao longo das mostras Panorama,
Expectativa e Midnight Movies, são cerca de 110 fitas de todos
os recantos do globo para serem percorridas em apenas 13 dias de festival.
Nesse percurso cineturístico, há vários circuitos.
Um primeiro que conduz aos nomes consagrados: Mike Leigh, Robert Altman,
Lars Von Trier, irmãos Coen, Woody Allen... não vê-los
é como vir ao Rio e não conhecer o Cristo! Outro que conduz
aos locais mais intensos: A Prisioneira de Chantal Akerman, A
Humanidade de Bruno Dumont, Bom Trabalho de Claire Denis, Crônica
da Inocência de Raoul Ruiz, A Maja Desnuda de Bigas Luna...
o cinema como verdadeira experiência. Um terceiro circuito aponta
para as promessas, para um percurso de cinema que pode trazer grandes
ou pequenas recompensas: Recursos Humanos de Laurent Cantet, As
Virgens Suicidas de Sofia Coppolla, O Quadro-Negro de Samira
Makhmalbaf, O Pequeno Ladrão de Erick Zonca, As Filhas
do Rei de Patricia Mazuy. E, por fim, um percurso apenas para fazer
registro, para captar as particularidades locais: Rotações
por Minuto, filme sobre a cultura de música eletrônica;
Genet em Chatilla, documentário sobre o escritor Jean Genet;
Baise Moi, filme polêmico que evidencia as relações
entre sexo e violência; O Lixo e a Fúria, documentário
sobre os Sex Pistols; os filmes de Bruce la Bruce e Rosa von Prauheim
na mostra Mundo Gay; os documentários sobre o movimento Dogma 95...
a lista não pára nunca... Para saber onde termina, só
mesmo conferindo nos cinemas – o que não promete em nada ser uma
tarefa ingrata.
Ruy Gardnier
e Juliano Tosi
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