O
cinema faz política (2):
Rosetta e os irmãos Dardenne
Émilie
Dequenne em Rosetta de Luc e Jean-Pierre Dardenne
1) O Festival do Rio desse ano tem vários
verbetes. Temos "falso documentário",
"vídeo digital", "odorama", "cinema oriental"...
Mas o verbete mais importante, em vista do que o Festival apresentou,
em duas retrospectivas e em alguns filmes, foi o quadro do cinema político.
As retrospectivas Ken Loach e Gillo Pontecorvo mostram nos mínimos
detalhes uma cinematografia que dá importância à luta
social e a emancipação do espectador pelo cinema. Esse cinema
coloca em foco problemas sendo resolvidos na tela para que o espectador
os entenda. Ou, então, fator mais comum no cinema político,
eles mostram na tela algo de profundamente "anti-humano" ou
que contrarie os direitos do homem ou constitucionais. Mostram e deixam
que tudo acabe mal para deixar o espectador revoltado no final. De qualquer
forma, a essência desse cinema é a denúncia, e sobre
a denúncia eles montam uma historinha para entreter o espectador.
Dependendo da qualidade do filme, a vida do personagem retratado vai ser
mais importante (ou não).
2) Ken Loach faz, diferentemente de Pontecorvo,
um cinema da denúncia que leva em consideração a
vide de seus personagens. Ele não mostra só "as coisas
importantes", a História em seu lado "oficial",
mas também uma micro-história do personagem, suas condições
de vida. É um cinema do personagem, não mais da história,
e isso já lhe concede um determinado lugar na história do
cinema político; mas, de alguma forma, é um cinema em que
o engajamento do personagem lhe garante mesmo que suas ações
não se realizem do jeito que deveriam (como em Meu Nome É
Joe)
o estatuto de heróis positivos. O herói positivo serve como
exemplo de ação, é moldado como uma espécie
de alma coletiva, aquele sob o qual a sociedade deve ser moldada.
Mais que um personagem, ele é um paradigma, um paradigma que tem
vida pessoal. E aí reside a fraqueza (estética e política)
desse cinema: como herói positivo, ele estará eticamente
acima do bem e do mal por suas ações (porque elas se justificam
por uma ideologia, não por egoísmo) e ele será pintado
como algo assemelhado a um terráqueo tornado semi-deus (o processo
oposto dos anjos caídos, pois eles saem de uma situação
divina para uma terrena). Isso é politicamente complicado porque,
ao filmar a famosa "tomada de consciência", o cinema
político chama para si algo como a transcendência de um "espírito
da humanidade" que se encarna no herói positivo. Esse
espírito da humanidade, contudo, eclipsa completamente o processo
político, que não lida com consciência, humanidade
ou transcendência, mas com meios e fins políticos de construção
de um futuro. Esse "espírito da humanidade" (ou qualquer
tipo de transcendência mundana) é Jesus reconstituído;
e a política precisa de Jesus?
3) E qual não é a surpresa
quando, num festival de cinema que apresenta uma retrospectiva de dois
cineastas "engajados", um filme recente nos vem ensinar tudo
o que há de errado com esse cinema político dos últimos
anos? Não é preciso de herói positivo, não
é preciso de tomada de consciência, não é preciso
de denúncia para fazer um cinema político. Rosetta,
o filme e a personagem dos irmãos Dardenne, nos basta para provar
que o cinema é político não pelo tema que ele coloca
ou pelo protagonista que ele molda, mas pelas situações
que ele mostra e, acima de tudo, pela forma que ele adota para mostrar
essas situações. No caso dos irmãos Dardenne, a forma
é o acompanhamento absoluto de Rosetta, a menina que precisa trabalhar
para sustentar a mãe e que, para isso, fará qualquer coisa.
Rosetta é sem consciência, sem transcendência, sem
história. Rosetta não tem alma. A câmara dos irmãos
Dardenne decide filmar Rosetta exatamente do jeito que ela é. Trata-se
de um filme simplesmente descritivo, que opta por não tomar absolutamente
partido daquilo que ele mostra (o partido já foi tomado anteriormente,
na escolha do tema do filme). Nessa decisão estética de
acompanhar descritivamente uma e apenas uma personagem (a câmara
é a sombra de Rosetta em todos os planos do filme, ela jamais sai
de cena em qualquer seqüência do filme) reside a escolha poítica
dos irmãos Dardenne como cineastas e como políticos: apenas
mostrar uma situação, apenas registrar um momento, jamais
focar determinada ação, jamais criar um relato mítico
sobre heroísmo. O cinema de Luc e Jean-Pierre Dardenne não
é um cinema da denúncia, e sim um cinema do registro.
4) Essa torção dá toda
a grandeza de Rosetta, e mostra as possibilidades de haver um cinema
político para além da denúncia e do herói
positivo, para além da História como teleologia e do Sujeito
como consciência, duas poderosas mistificações em
que a esquerda do século XX se afundou via Sartre, entre
outros. Rosetta tem a grande sabedoria de não tentar enganar
o espectador dizendo que sabe o que fazer para o mundo melhorar. Rosetta
tem a grande decência democrática que infelizmente
falta a todo cinema político de dar ao espectador o direito
de interpretar. Rosetta se atém aos fatos: é brutal
mesmo que descritivo, é político mesmo que inconsciente,
é um registro político do real que recusa a doutrinação
e as saídas prévias. E esse tipo de cinema político
é o único cinema político possível.
Ruy Gardnier.
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