Rio-São
Paulo, itinerário do cinema mundial (19-21 out 2000)
A saída depois do Festival do Rio
BR 2000 não pôde deixar de ser marcada por um grande acontecimento
extracinematográfico: as duas apresentações (Rio
e São Paulo) do grupo norteamericano Sonic Youth, como que coroando
o final de uma maratona cinematográfica e apadrinhando o começo
de outra. No único dia que nenhuma das duas cidades não
faz exibição ao público, dia 19 o fim do Fesival
do Rio foi no dia 18 e a primeira exibiçao paga da Mostra foi no
dia 20 , é dia de escapar um pouco do cinema e dar vazão
ao mundo da música. Mas qual o quê. Em conversa com o cantor
e compositor Jim O´Rourke, quinto membro interino do quarteto novaiorquino,
o cinema volta, inevitavelmente. Digo a O´Rourke que o filme Eureka,
de Shinji Aoyama, havia sido exibido no dia anterior. Ele dá um
pulo de espanto e começa a dar risada. Não era para menos:
Eureka, filme japonês que soma 217 minutos de duração
fotografado em preto e branco com filtro sépia, foi assim batizado
por causa do disco homônimo do cantor (no fim do filme, toca a faixa
que dá título ao disco e ao filme). "Mas o filme passou
mesmo, com legendas e tudo?" Sim disse eu passou
no Festival e depois será exibido comercialmente.
E já que o assunto da revista é
cinema, o palco do Sonic Youth não deixa de ser uma experiência
visual impressionante. Na passagem de som, víamos como projeção
de fundo somente a imagem de pessoas apoiadas numa espécie de ônibus.
nada muito mais que isso. No show, às imagens de projeção
eram acrescidas as luzes costumeiras de shows de rock, mas mesmo os efeitos
de luz eram discretos pois a banda, numa incrível sabedoria cinematográfica,
sabe que num palco quem tem que brilhar são os personagens .As
imagens, como em toda a carreira videoclípica do SY, servem justamente
e apenas para dar o clima turvo das composições, para servir
de câmara de acesso privilegiada ao universo sonoro do grupo. Assim
com os clipers de "Candle", "Disappearer", e assim
também com ao performance ao vivo.
Chego em São Paulo às 13h de
sexta-feira, 20, na aurora da Mostra (os filmes começam a ser exibidos
ao meio-dia). Meu dia cinematográfico ainda não será
até altas horas, pois ainda devo conferir a apresentação
do Sonic Youth em Sâo Paulo. A escolha dos filmes escolhidos para
começar o percurso da mostra de Leon Cakoff são fruto do
horário e da facilidade de localização .Antes dos
filmes, entretanto, o credenciamento. A cabine simpática das credenciais
e dos passes especiais (integral, 20, 30 e 50 filmes por pacote) não
me consegue identificar, Contracampo não consta da lista oficial
num primeiro momento, num segundo momento, graças à auspiciosa
atenção da organização da organização
da mostra, as credenciais são concedidas aos dois correspondentes
da revista idos a São Paulo. Coincidentemente ou não, São
Paulo dá mais uma vez a prova de maior hospitalidade à crítica
jovem do que a terra natal da revista, onde o Festival do Rio BR julgou
merecido conceder apenas uma credencial, fazendo o restante da redação
da revista pagar ingresso para fazer a mais abrangente e extensa cobertura
crítica do Festival.
Aos filmes, então. Janela Indiscreta
é a primeira sessão. A restauração, diz-se,
não foi tão boa assim: há descontinuidades de luz,
de cor, etc. Nada, entretanto, que meus olhos tenham percebido na cópia
que vi. Todo o temor de James Stewart em casar-se e viver uma vida plácida
fica fantástico ampliado, restituído ao tamanho original
da tela de cinema. O famoso travelling do início, em que um movimento
à esquerda nos revela sem dizer uma palavra que Stewart foi atropelado
porque fotografava aventurescamente uma corrida de carros, ganha finalmente
uma apreensão digna e pode voltar a maravilhar gerações
de espectadores que não conseguiam ver muito bem o que acontecia
na telinha. A aparição de Hitchcock num dos apartamentos
que o fotógtafo espiona, então, jamais foi por mim percebida;
na tela grande, o gordo Hitch salta aos olhos com seu semblante atônito
e risível.
Qualquer filme sendo visto depois de uma
das grandes obras de Hitchcock tende a ter seu valort diminuído.
Mas não é o caso com Gigantic (Absoluten Giganten), se Sebastian
Schipper, que é em todos os aspectos um filme nulo. Schipper participa
da nova tradição Tom Tykwer do cinema alemão: linguagem
de videoclipe, ar cool, tiradas "bem sacadas", sotaque
de cinema autoral filmando toda a banalidade dramatúrgica do cinema
americano. Se Tykwer consegue ser ao menos simpático em Corra Lola
Corra (mas mesmo assim insuficiente), é porque ele sabe em momentos
que tudo que ele filma é absolutamente vazio. Schiffer não
é tão esperto: ele crê que há verdade nos personagens,
que sua estética realmente constrói. E a crença na
forçca de pesonagens made-to-order é ridícula: com
isso, o filme se perde como proposta. Espremido entre Janela Indiscreta
e o poderoso show que o Sonic Youth deu no Jockey Club em Sâo Paulo,
Gigantic restará na memória apenas como uma má lembrança
derrisória.
O cansaço do segundo show em dois
dias me faz começcar o dia cinematográfico às 16h,
vendo o polêmico Time Code, de Mike Figgis. A falha principal
do cinema de Figgis consiste nessa irritante teimosia que ele tem de tentar
parecer elegante, com aquele saxofone yuppie indefectível
tapando cada poro de cada filme seu e impedindo-o de respirar sozinho.
Time Code, para variar, só funciona com respiração
artificial a trama em torno da qual gira o filme é pífia.
Toda a curiosidade do cinema de Mike Figgis é essa muleta que ele
supõe que seja "experimentação formal",
sempre desvinculada de qualquer necessidade lógica da história,
sempre como perfumaria "ishperta". Time Code, como bem
disse Felipe Bragança em Contracampo, é uma papagaiada com
boas intenções. Mas de boas intenções...
O pior de ver um filme ruim em uma mostra
é saber que outro possivelmente interessante passou no mesmo horário
e você não viu. É tudo o que passa pela sua cabeça
quando você vê um filme como Quem Tem medo de..., um filme
de proposta bem interessante que se mata aos poucos pela inoperância
a longo prazo do projeto. Colocar diferentes grupos recitando Tchékov,
Ésquilo, Albee é muito curioso, e a aposta vale em seus
primeiros minutos. Mas depois que se percebe que o único agrado
do filme é a performance dos atores e que a trêmula e pouco
iluminada manipulação da câmara digital não
ajuda em nada, o filme perde aos poucos todo seu interesse. Uma pena,
pois enquanto eu via dois filmes insuficientes, passava um que foi a menina
dos olhos de Eduardo Valente: Canções do Segundo Andar,
de Roy Anderson.
O terceiro filme da noite seria um reencontro
com o cinema de Satyajit Ray, depois da importante mostra que a Mostra
Rio havia feito, cobrindo filmes da primeira parte de sua carreira. O
filme seria Os Jogadores do Fracasso, de 1977. Chegando à
Sala Cinemateca por um caminho nada hospitaleiro ertre o Ibirapuera
e a sala de cinema existe uma imensa obra malufista que atravanca a passagem
, descubro que os filmes de Ray ainda estão presos na alfândega,
esperando liberação. A cinemateca exibirá O Jantar,
de Ettore Scola, filme com elenco estelar (Fanny Ardant, Marie Gillain,
Stefania Sandrelli) e com o mimo de ter sido a última aparição
de Vittorio Gassman nas telas. O filme é uma repetição
da fórmula Scola: um mesmo lugar para mostrar diversas contradições
da sociedade, perspicácia na caracterização dos personagens,
peculiaridade e senso de ritmo no humor (O Terraço, O
Baile). Tudo isso está presente no filme, com charme, mas mesmo
assim parece que a fórmula já dá sinais de desgaste,
indo em momentos do trivial ao banal. Um bom filme, contudo. E apenas
o começo de uma mostra que promete.
Ruy Gardnier
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