Que
Faremos com Nossos Velhos?

Em 1995,
os cem anos de cinema serviram para uma reavaliação crítica
por parte de todos os segmentos da vida cinematográfica quanto
ao passado do cinema exibidores, produtores, cineastas,
museus, admiradores e do lugar que seria reservado à restauração
e à manutenção do passado fílmico. Houve muitos
"devemos": devemos salvar os filmes que sobraram, devemos recuperar
os filmes em risco de morrer, devemos exibir o passado do cinema, etc.
Só que todos esses deveres encontravam uma falha, digamos, gramatical:
o sujeito de enunciação do "devemos" nunca era
o mesmo sujeito do "fiz"; poderia ser o do "farei",
mas em cinco anos viu-se que o tempo verbal preferido para os arautos
do "devemos" era o futuro do pretérito, de preferência
conectado a algum subjuntivo: "eu faria, se..."
Essa
constatação cruel cai como uma luva se pensarmos no lugar
dado esse ano às retrospectivas e às mostras paralelas dedicadas
a nomes do passado no Festival do Rio BR e na Mostra Internacional. Ao
contrário de dois ou três anos atrás, em que a questão
da importância da recuperação da história do
cinema estava em pauta, e que retrospectivas de diretores como Theo Angelopoulos,
Yasujiro Ozu, Satyajit Ray, Kenji Mizoguchi, Roberto Rossellini, entre
outros, recebiam lugares fixos e privilegiados (mesmo que em salas de
tamanho restrito) de exibição, o ano de 2000 não
foi muito amigo da história do cinema, nem no Rio nem em São
Paulo. Quando uma retrospectiva recebia uma sala fixa, era geograficamente
desvinculada do eixo central das outras mostras; quando recebia uma boa
sala, era apenas como "abertura de gala"; ou então a
retrospectiva era fragmentada em n salas, e, conforme o caso, filmes do
mesmo diretor passavam no mesmo horário.
No Rio
de Janeiro, as tradicionais salas 3 do Espaço Unibanco e do Estação
que já abrigaram retrospectivas Tarkóvski, Rossellini,
Ozu, Roberto Farias, S. Ray, entre outros exibiram a programação
do recente cinema mundial. Mesmo sendo pequenas (em torno de 100 lugares),
essas salas se localizavam no coração do agito cinematográfico,
e de certa forma faziam com que o presente do cinema pudesse conviver
com seu passado de igual pra igual. As retrospectivas "de luxo",
como John Cassavetes, que foram integralmente exibidas na sala 2 do Unibanco
(250 lugares) e no Odeon (na éoca 500 lugares), não se repetiram.
A mostra dedicada a John Waters correu em muitos lugares diferentes: Ipanema,
Botafogo e Odeon viram filmes diferentes de Waters, e quem quis s restringir
a qualquer um desses lugares perderia algum filme.
O caso
Museu da República, entretanto, foi o mais grave do festival. Nas
mostras antigas, o Museu exibia a programação de atualidades
da mostra e tinha, assim, seu público garantido. Dessa vez, resolveram
relegar ao Museu as retrospectivas dedicadas a Paulo César Saraceni,
Ken Loach e Gillo Pontecorvo, sem muita divulgação e geograficamente
deslocada de todo o burburinho do festival. Algo como o lugarzinho dedicado
à história do cinema, um lugarzinho tão dedicado,
tão especial que ninguém foi. Excetuando um ou dois filmes
de Loach e A Batalha de Argel de Pontecorvo numa sessão
em que estava presente toda a comunidade dos argelinos no Brasil ,
todos os filmes do Museu tiveram público abaixo do esperado. No
ano de 2000, o Museu da República foi o Museu Indesejado do Cinema:
pouco divulgado, estrategicamente retirado do grande circuito do festival
e sem contato com o público, revelou a triste história da
história do cinema no ano 2000.
Em São
Paulo, as retrospectivas foram retalhadas pelos horários e pelos
múltiplos cinemas. A seleção foi melhor que a do
Rio três sagas de Louis Feuillade, 21 filmes de Buñuel
e 6 do indiano Satyajit Ray , mas essas três retrospectivas
foram dissolvidas no ambiente da Mostra como sessões comuns, sem
respeito especial àqueles que gostariam de privilegiar os clássicos
do cinema na Mostra. O caso Feuillade ilustra: exibido diretamente do
digital numa restauração primorosa, seus Vampiros,
Fantomas e Judex foram colocados na Sala Uol de Cinema,
desvinculados do eixo da mostra (Cinearte, Espaço Unibanco, Masp,
Vitrine e CineSesc). Mas esse seria o mal menor. Mesmo que geograficamente
constante, a Retrospectiva Feuillade encontrou a mais bizarra programação.
Fosse um fã de cinema mudo, você esperaria entre 14:00 e
20:00 para ver a continuação de Fantomas (dia 31)
ou, pior, tendo visto os três primeiros episódios dos Vampiros
às 17:45 (e terminando às 19:40), você esperaria até
23:20 para assistir a 40 minutos de apenas um episódio, o quarto?
Certamente quem programou assim essa retrospectiva jamais deve ter pensado
que no mundo havia alguém que gostaria de acompanhar inteiras essas
retrospectivas.
No caso
de Buñuel e Satyajit Ray, a fragmentação completa.
Pobre o fã de Buñuel que, querendo ver sua obra mexicana,
correu até sua retrospectiva na Mostra. O dia 23 exibiu, entre
12:00 e 15:00, seis filmes do diretor espanhol. Cada um desses filmes
passou numa sala diferente, impedindo até o mais ardoroso admirador
de Don Luís de ver em retrospecto a sua obra. Satyajit Ray sofreu
do mesmo problema, numa dimensão menos megalomaníaca. Com
apenas seis filmes programados, seus filmes foram a incógnita da
Mostra: várias vezes desprogramados e incertos até o último
minuto, Ray ainda teve seus filmes exibidos em quatro salas esparsas,
nunca num horário que pudesse acomodar agradavelmente o admirador
ou o possível admirador de seu trabalho, uma vez que a exibição
de algum de seus filmes é raríssima por aqui. Tanto com
Buñuel quanto com Ray, quem quis se restringir a apenas uma sala
para assistir a seus trabalhos perdeu ao menos um filme. E haja fã
de Ray: você faria a maratona Ray do dia 02? Ás 14:00, Os
Jogadores do Fracasso no Sesc; às 16:45, A Casa e o Mundo
no Centro Cultural; às 21:25, depois de três horas de espera,
O Mundo de Apu, no mesmo lugar. Alguém quer que Satyajit
Ray seja visto? Alguém quer algo com a História do Cinema
além de exibir apenas como "mais uma" atração
dos festivais e mostras mais importantes do Hemisfério Sul? O que
faremos com nossos velhos?
Ruy
Gardnier
|
|