A política das nacionalidades, versão SP


A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo ajudou a criar, por si mesma, uma nova geografia do mundo, que qualquer um dos mostrófilos aprendeu a identificar. O fato é que o cinema, como movimento artístico obrigatoriamente mais contemporâneo, sempre, possui tamanha identificação com seus locais de origem, que fica difícil não ligar um país ou região a uma estética ou estilo. E a Mostra de SP ajudou a aumentar esta sensação por duas das características de sua seleção de filmes: o alcance global sem fronteiras, e a insistência em certas nacionalidades. Como resultado disso o espectador assíduo da Mostra tem hoje uma relação com o mundo completamente diferente.

Costuma-se dizer que o cinema traz os locais mais distantes até o seu espectador, e a verdade por trás disso não pode ser escondida. O fato é que o freqüentador de uma mostra como a de São Paulo está em contato muito mais direto com a realidade de locais tão distintos quanto o Tadjiquistão e a Alemanha do que um brasileiro que não saia de casa. Este, muito provavelmente, pela sua televisão, tem acesso quando muito ao modelo americano de vida, e talvez a um reflexo da dramaturgia mexicana, além é claro do Brasil nosso de cada dia.

No entanto, o mais fascinante deste processo de "turismo imóvel" é o que diz respeito ao jogo estético proposto pelos filmes. Desta forma, mais do que apenas ter acesso enciclopédico a uma geografia, sociologia ou história de diferentes nacionalidades, o espectador da Mostra tem acesso a algo mais profundo. Pelo livre acesso ao imaginário artístico de um povo, ele acaba sabendo muito mais do que poderia aprender apenas pelos livros de conhecimento direto. Ou seja, a arte, seja ela ficcional ou mesmo documental, permite um acesso a áreas do saber nacional de um país que os simples fatos não permitem. Por isso, a geografia ampla criada no saber deste espectador, não cessa de fascinar.

Passando ao exemplo prático, e usando sempre a Mostra de São Paulo. Hoje o espectador da mostra já sabe que um filme do Leste Europeu, principalmente das repúblicas iugoslavas ou de uma Romênia ou Bulgária, provavelmente o apresentará um retrato de um realismo pungente, misturado com surpreendentes arroubos fantásticos e surreais. Os motivos, ele pode buscar entender por si mesmo. áreas no geral muito centradas na tradição de seus povos, cujos mitos parecem vivos, estes países também passaram (e passam) por dificuldades financeiras e de produção que geralmente levam seus filmes para as ruas, dando a eles o chamado realismo. Por outro lado, a presença do imaginário exacerbado é muito forte em toda a tradição latina e eslava destes países. Assim, com sutis diferenças (os mais realistas sendo os poloneses e húngaros e os mais fantasiosos os iugoslavos), o espectador da Mostra sabe um pouco mais sobre o Leste Europeu.

Da mesma forma, ele já aprendeu que o tempo passa de um aforma muito peculiar nas repúblicas soviéticas, seja ela o Cazaquistão, a Lituânia ou a Letônia. Todos parecem imóveis, ou no mínimo muito lentos. Os acontecimentos têm o ritmo da natureza abundante mas imutável, da imensidão da pradaria aos campos gelados, dos rios aos mares. Os russos, sob influência do realismo socialista, são os que menos exercem esta percepção, mas ainda assim possuem uma linguagem muito diferente temporalmente falando, dos ocidentais.

Já os japoneses (velhos conhecidos dos paulistas, quando não nipo-paulistas) professam no cinema a mesma mistura de modernidade/contemporaneidade com a forte tradição que os caracteriza. Os filmes são marcados por verdadeiros arroubos de linguagem, e podem ir do mais contemplativo ao mais movimentado em apenas segundos ou diretores. Tudo vai variar de qual parte da cultura japonesa sai o artista.

Desnecessário falar do cinema iraniano, praticamente apresentado ao Brasil na Mostra de SP. Foi lá que os espectadores descobriram a mistura do neo-realismo com o humanismo quase existencialista que só os maiores cineastas iranianos conseguem exercer.

Que os franceses falam muito todos sabem, mas o espectador de São Paulo sabe que, além disso, eles gostam também de mexer suas câmeras. Sabem ainda que os alemães tentam desesperadamente parecer modernos com toda sua frieza, e que os italianos nunca conseguirão fugir de seu natural bom humor e poesia, por mas sério que sejam. Que os chineses são a própria encarnação da tradição, enquanto em Hong Kong tudo é hoje, agora. Que os latino americanos tratam de sua história recente com paixão, e que os africanos procuram incorporar o seu folclore a tecnologia do fazer cinema. Que os gregos não conseguem escapar dos seus séculos de história e arte, e que os canadenses são os primos mais estranhos dos americanos.

Em suma, o espectador de São Paulo sabe disso tudo. E sabe ainda que um diretor qualquer, de qualquer um destes países, pode, a qualquer momento, renegar os estereótipos e surpreender a todos. O que importa é que o espectador de uma mostra de cinema como esta é, por menos que queira, um pouco mais tolerante, humano e despreconceituoso do que quando começou. E, com um pouco de sorte, talvez aprenda muito sobre si mesmo e o Brasil ao acompanhar as questões do resto do mundo, de hoje e sempre.

Eduardo Valente