Duas
ou Três Coisas
Que Eu Sei Dele (O Filme)
A propósito da restauração de O Padre e
a Moça


Paulo
José e Helena Ignez em O Padre e a Moça
de Joaquim Pedro de Andrade
Grande notícia, essa
da restauração do filme O Padre e a Moça,
dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, por ocasião do Festival
do Rio. Rodado em 1965, lançado em 66, o filme está sendo
apresentado em cópia nova, após a restauração
de seus originais, graças ao esforço da família do
cineasta e ao fundamental apoio do Ministério da Cultura. Eu disse
fundamental, mas posso acrescentar também lento, limitado e desestruturado,
o que é lamentável, por tornar cada caso de preservação
uma via crucis a ser percorrida por abnegados, sem a estrutura de um programa
de restauração que faça jus ao nome.
A primeira vez que vi O Padre e a Moça
foi numa tarde de sábado, no Cine-Arte UFF, em Niterói,
numa daquelas cópias sofríveis que de vez em quando o cinema
tem a sorte de exibir. Logo nos primeiros instantes eu já tinha
esquecido por completo os tormentos da travessa pela Baía, e tampouco
me importava o mau estado da cópia. A cópia era ruim, mas
o filme sobrevivia, e muito. Lembro-me de ter encontrado com alguns amigos
no fim da sessão, e todos comentávamos a força do
filme, aquela beleza impressionante, o choque que aquela exibição
nos causou. É uma das grandes alegrias que um filme pode nos dar,
o prazer que vem no fim das sessões, quando nos damos conta de
como o que vimos se comunicou conosco, e vamos então trocar impressões
com nossos comparsas.
Há alguns filmes que podem nos dar
mais que isso, filmes que podem nos marcar a memória e passar a
ser um parâmetro, uma ruptura, um doce fantasma que passa a nos
perseguir. E, na minha listinha pessoal, O Padre e a Moça
é um deles. (Não só na minha, depois eu descobri
vários outros fãs do filme).
Foi o primeiro longa de ficção
de Joaquim Pedro de Andrade, baseando-se num poema de Carlos Drummond
de Andrade, depois de já ter feito o curta Couro de Gato
(parte de Cinco vezes favela) e os documentários Garrincha,
Alegria do Povo, O poeta do castelo, sobre Manuel Bandeira,
e O Mestre dos Apipucos, sobre Gilberto Freyre. A fotografia, câmera
e cenografia são de Mário Carneiro. A montagem foi feita
por Eduardo Escorel, também assistente de direção.
A música foi feita por Carlos Lyra, a partir de temas religiosos
eruditos, e foi executada pelo Quinteto Villa-Lobos, com orquestração
de Guerra-Peixe.
Todos os citados saem-se magnificamente bem
em suas funções. Mário Carneiro exercitou como nunca
a sua experiência de gravurista e estudante de artes plásticas,
discípulo de Iberê Camargo. Assim como Joaquim Pedro, estava
chegando à casa dos trinta, e já era então um dos
mais respeitados fotógrafos brasileiros, após ter co-dirigido
Arraial do Cabo, com Paulo César Saraceni, e ter cuidado
das luzes dos filmes deste e de Joaquim Pedro. A relação
dos dois sempre foi complicada, produtiva, sem dúvida, mas oscilando
entre o carinho e as disputas. No caso do O Padre e a Moça,
Carneiro sempre conta que Joaquim Pedro demorou quase vinte anos para
reconhecer o valor da fotografia do filme. Ao longo das filmagens, o diretor
temia que seus atores seriam obscurecidos pelas sombras do fotógrafo.
Afinal, dizia ele, cinema não é gravura.
Foi o último trabalho dos dois juntos.
Não, minto. Foi, sim, o último longa de Joaquim Pedro fotografado
por Mário Carneiro. Mas o único longa dirigido por este,
Gordos e Magros, foi produzido por Joaquim Pedro, uma década
depois do Padre e a Moça.
A fotografia do filme, sempre irretocável,
realmente incomodou Joaquim Pedro. Somente após rever o filme,
quase vinte anos depois, num festival europeu, que o cineasta valorizou
a beleza do que fez e reconciliou-se com o filme, estimulado pela ótima
acolhida do público na oportunidade. Chegando ao Rio de Janeiro,
fez uma visita ao amigo para contar a novidade, acompanhado de um presente
importado da Escócia.
Na frente das câmeras, temos a estréia
de Paulo José no cinema, e mais Mário Lago e Fauzi Arap,
todos atores vindos do teatro.
(Na verdade, por uma dessas sortes históricas,
Paulo José entrou no filme já às vésperas
das filmagens. Também em seu caso foi o primeiro filme de que participou,
o ator que estava inicialmente escalado, Luiz Jasmin, adoeceu, já
em Minas Gerais, após participar de meses de ensaios na casa de
Joaquim Pedro, no Rio, com Helena Ignez).
Sim, e há Helena. Mariana é
a moça que provoca toda a tragédia, que vira a cabeça
de todos no vilarejo. E Helena Ignez incendeia o filme, sai-se inacreditavelmente
bela no papel. Helena na época era atriz já reconhecida,
tendo participado de filmes como O Assalto ao Trem Pagador e Bahia
de Todos os Santos, e tendo sido também capa da revista O Cruzeiro.
Sua Mariana é, de fato, encantadora. O padre, o coronel, o boticário,
as luzes, a música, tudo parece ser seduzido por Mariana, por sua
beleza, seu desejo, sua tristeza.
Joaquim Pedro não tinha tanta razão
ao temer pelo destino de seus intérpretes. Não é
raro ver, em textos sobre Joaquim Pedro, elogios à sua capacidade
de direção de atores. Mas há algo especialmente magnético
em O Padre e a Moça, um mistério que eu não
consigo resolver atribuindo apenas à qualidade do diretor ou dos
atores. O longo tempo de convivência ao longo das filmagens, isoladas
do mundo, mais o nervosismo febril do primeiro longa de quase toda a equipe,
e considerando-se ainda todo o enxugamento do filme na montagem, tudo
isso, somado à beleza da fotografia, das interpretações
e da música, tudo isso torna o filme um pouco hipnótico,
mesmo com o ritmo lento, marcial, da história. Ou até também
por causa dele.
O interesse do filme em contar uma tragédia
amorosa rendeu críticas da parte dos amigos cepecistas e cinemanovistas
a que o grupo estava ligado. De quebra, o papel dos habitantes do vilarejo
é triste. São incapazes de reagir à sua exploração,
vivem de procurar diamante em minas já esgotadas e só se
manifestam para mostrar seu desagrado diante da situação
criada pelos protagonistas. Além das desagradáveis beatas,
ainda há também o caso das pessoas com bócio. Por
falta de vitaminas, habitantes da região de São Gonçalo
das Pedras, onde o filme foi feito, tinham essa doença, que incha
a região do pescoço. A exibição dessa triste
visão, ainda que sem grande destaque, desagradou tremendamente
a alguns, e entre os debates dos cepecistas houve quem defendesse que
Joaquim Pedro deveria ter seus filmes combatidos, que ele era burguês,
aquela coisa toda. Há um caso célebre de uma discussão
em que um conhecido dramaturgo do CPC dizia que os padrões éticos
de Joaquim Pedro eram reacionários, e portanto ele não deveria
mais fazer filmes, e o filme e o diretor foram defendidos, com bastante
disposição, por Mário Carneiro.
O que pode nos trazer hoje uma história
de amor considerada tradicionalista já quando foi feita?
O Padre e a Moça não
volta à praça por suas inovações formais.
Volta por seu interesse por sentimentos, pela beleza, pela sedução
e pelo medo de se deixar seduzir. Volta porque manifesta sua opção
última pela entrega sem populismos ou falsos arroubos. Conta sua
história com a intensidade de um Murnau, de um Dreyer, dos grandes,
enfim, daqueles que influenciavam os primeiros filmes de Joaquim Pedro,
sua fase mais poética, antes da ruptura satírica de Macunaíma.
Vamos torcer para esta cópia de O
Padre e a Moça voltar a ser exibida de forma devida, após
a folia do festival. Mas, quanto à restauração de
seus negativos, só me resta repetir o que disse no início:
esta é uma grande notícia.
Daniel Caetano
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