Morte
aos cinéfilos!! Viva os cinólatras!!
As mostras
de cinema no geral, mas em especial as gigantes, como o Festival do Rio
ou a Mostra de SP, parecem o verdadeiro habitat natural de uma
espécie muito, mas muito estranha de gente: os cinéfilos. Os cinéfilos
compõem um ramo da família dos freqüentadores de cinema que possui características
específicas. Aparentemente se reproduzem em cativeiro com tranqüilidade,
especialmente nas condições gélidas do ar condicionado das salas, e de
preferência com algum catálogo na mão.
Costuma-se
diferenciar o cinéfilo do freqüentador de cinema (assíduo ou não) por
conta de um hipotético saber diferenciado. Enquanto uma pessoa pode ir
ao cinema quatro vezes por semana, mas só assistir aos últimos lançamentos
hollywoodianos, o cinéfilo pode ir até menos vezes (mas não muito, digamos,
semanalmente), mas escolhe com carinho o seu filme pelo currículo do diretor,
pela elenco, pelo tema, pela recepção do filme na crítica. O cinéfilo
é a força motriz do chamado "circuito de arte" e muito mais
ainda, de todo festival de cinema. é portanto, mais ainda, o público alvo
de uma publicação (usamos a palavra no seu sentido mais amplo) como a
Contracampo.
Pois
bem, pode então parecer um suicídio, mas me imbuindo do nome coletivo
da revista, venho por este decretar aberta a temporada de caça ao cinéfilo!
Morte aos cinéfilos todos. Viva o novo rosto do cinema ideal, o cinólatra.
Vale explicar o porquê, afinal se não, não seria a Contracampo.
O
cinéfilo foi uma invenção muito útil nos anos 60, quando a hegemonia de
Hollywood dos cinemas do mundo foi, se nem de longe ameaçada, pelo menos
contrabalançada com o reforço do cinema de autor. Os cinemas novos do
mundo (nouvelle vague, Cinema Novo brasileiro, Cinema Novo japonês, cinemas
novos do Leste Europeu, etc) começaram a criar o chamado circuito de arte,
que se diferenciaria radicalmente do produto hollywoodiano. Neste momento,
fenômenos como a chamada Geração Paissandu, no Rio de Janeiro, criaram
um movimento efetivo de entendimento do cinema como força de reflexão
e ação na sociedade, de atuação política e estética. Nada mais saudável
que os cinéfilos de então. Este processo parecia se radicalizar no fim
da década de 70 e nas décadas de 80 e 90, quando a média da produção dos
grandes estúdios parecia voltar-se cada vez mais para espectadores menos
exigentes.
Quando
este circuito de arte se consolida, nos anos 80/90 (não por acaso, época
dos festivais de cinema), o que antes era um movimento ligado a reflexão
e ação social e artística, de contestação de um sistema, começa a perder
seu impulso primeiro (claro que isso está ligado a uma mudança em geral
do comportamento social nos anos de 60 até 90, mas não vamos entrar nesta
seara aqui). Um dos mais nefastos responsáveis por isso é o chamado "cult
movie", criação dos anos 80. A cinefilia perde seu caráter de reflexão,
e vira uma moda, como qualquer outra. Não perder o mais novo filme "cult"
é tão necessário quanto estar por dentro da danceteria da moda, ou dos
"points" de badalação. O circuito de arte passa de local de
contestação para algo muito parecido com o circuitão, apenas "mais
inteligente".
Nesta
última frase é que está o verdadeiro motivo para a declaração de guerra
ao cinéfilo. Hoje, o cinéfilo é a força mais retrógrada que existe, numa
completa deturpação dos ideais dos anos 60. Ao invés de efetivamente usar
o cinema como fonte de informação, hoje ele vai apenas se manter "em
dia". Ver um filme é uma obrigação social. Mas não de ação social,
e sim de status. Como assim, você não viu o último Almodóvar? E o Woody
Allen? Claro que seria ingênuo pensar que aquela geração de 60 não sentia
a mesma pressão pelo último Godard ou Bertolucci. Mas a diferença estava
na postura em torno do ato de ir ao cinema, de pensar o mundo, em suma.
Havia um tesão que hoje não se vê.
Pior
do que a perda deste tesão, é o complexo de superioridade (e aí sim vemos
um processo evolutivo desde os anos 60) que o cinéfilo mantém. Um reflexo
da postura da classe média brasileira, este cinéfilo sabe o que é bom.
"Culto", ele rejeita os amigos que só vêem as besteiras de Hollywood.
"Moderno", ele não se encanta com os trabalhos de contestação
de um Straub. Pelo contrário, ele é o gosto perfeito: nem popular demais,
nem cabeça. O cinéfilo sim, este sabe o que é realmente bom. PRONTO: aí
está a receita de como tornar um revolucionário num fascista. E hoje o
cinéfilo é a encarnação de toda a burrice e limitação que acomete o mundo.
Símbolo e resultado de uma época, ele não se rebaixa a ver um filme de
ação hollywoodiano (ou não confessa nas rodas de amigos...), e portanto
não conseguiria diferenciar um Missão: Marte de um Independence
Day, mas ao mesmo tempo ele não conhece bem a diferença de um Godard
para um Truffaut, ou de um Murnau para um Lang. Mas, ele está na moda,
sabe o que é "cool", independente, moderno. Ele é a encarnação
do gosto médio culto.
Ao
cinéfilo, uma proposta de oposição: O CINÓLATRA! O cinólatra não
vai ao cinema porque precisa poder conversar com os amigos depois, vai
porque PRECISA, e pronto. Ele não entende o mundo primeiro e vai ao cinema
confirmá-lo, vai sim para DESCOBRIR O MUNDO. Ele não escolhe os filmes
baseado nas primeiras páginas dos cadernos culturais, mas sim nas PÁGINAS
TODAS. Ele não lê a crítica para achar uma indicação de programa, mas
sim para DIALOGAR. Ele não procura nos filmes uma identificação, mas sim
a ESTRANHEZA ou a NOVIDADE. Ele não procura só os clássicos consagrados,
e já mastigados, mas sim a GARIMPAGEM. Ele não vai ao cinema para ser
"inteligente", vai para REFLETIR e SE EMOCIONAR (que como Brecht
e Eisenstein sacaram há muito tempo, são complementos). Finalmente, ele
não vai ao cinema para se identificar com o filme, e sim identificar NO
FILME o que diz respeito ao mundo a sua volta.
MORTE,
ENTÃO AO CINÉFILO!
VIVA
O CINÓLATRA!
Pois
ele acredita que o cinema é maior diversão, e que diversão é arte, e vice-versa.
Eduardo
Valente
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