Manifesto pelo Poder (al)Químico da Película, Ainda


Há uma forte tendência no cinema atual, conforme discutimos em relação ao recente Festival do Rio, de louvar a chegada do vídeo digital como a vinda do Messias, do Salvador. É um prazer enorme ver um cineasta consagrado, um senhor de alma jovem como Carlão Reichenbach, entusiasmado como se fosse uma criança com as novas possibilidades de linguagem e produção que as novas tecnologias trazem. É um prazer ver um cineasta do porte de um Arturo Ripstein conseguir realizar dois filmes em um ano, algo que ele jamais poderia fazer sem o auxílio do digital. É um prazer pensar que o centro do poder na produção da arte cinematográfica pode passar de volta dos financiadores aos artistas. Por isso tudo, viva o digital!

Mas, vamos com calma, né não gente? Se o Carlão é um senhor de alma jovem, o fato é que sou apenas um garoto de alma velha. E, por mais que eu fuçasse a recente produção de vídeo kinescopado no Festival do Rio, na Mostra de SP, nos cinemas em geral, a euforia está longe de me pegar. Os motivos são vários.

Um primeiro motivo é puramente estético. O fato é que ainda não se passou da fase de “novidade” no que diz respeito ao digital. Então, o veredito final (positivo ou negativo) não pode ser dado. Basta lembrar os primeiros filmes sonoros ou a cores. O uso do som e da cor não eram ainda compreendidos em toda sua amplidão de conceitos e possibilidades, e por isso mesmo sua aplicação era precária. No caso do som, num primeiro momento importava era mostrar muitos atores falando (sem perceber a involução de linguagem que as câmeras sofreram, por exemplo, ao se tornarem mais pesadas e quase imóveis), e o cinema pareceu dar um passo atrás. Com a chegada da cor, ocorre algo parecido, e se filmava cenários e jarros e figurinos com o máximo de cores possíveis, sem com isso fazer desta inovação algo de realmente útil à linguagem. Mais tarde, sem dúvida, ambos foram assimilados e usados com inteligência. Assim nos parece que vai acontecer com o vídeo. Ele ainda vai passar desta fase pós-parto, onde tudo parece motivo para se filmar em vídeo, e principalmente, só se percebe o potencial mais óbvio, por exemplo, da câmera mais leve, ou da proximidade com o estatuto da realidade. Porém, para cada Os Idiotas com um Lars Von Trier por trás da câmera dando as coordenadas para uma completa reordenação da lógica fílmica, há um sem número de subprodutos (“dogmáticos” ou não) que se aproveitam do momento e realizam filmes sem qualquer interesse com sua câmera infantilmente móvel, ou com suas tolas brincadeiras de “verdade ou ficção”. Senão por nada mais, só esta entressafra estética do digital já pedia um pouco mais de paciência.

Há porém outros motivos para cautela. Uma das maiores inovações que se espera do digital é uma noção de que “qualquer um pode fazer um filme”, ou seja, os custos se barateiam tanto que o cinema é desmistificado e popularizado. Sim, sim, isso é uma maravilha se significa que Arturo Ripstein poderá filmar mais, ou se Godard ou Tata Amaral, por exemplo, poderão dar sequência a projetos. No entanto, não sei se sou só eu, mas a noção de que “qualquer um pode fazer um filme” é duplamente assustadora. O primeiro susto, possivelmente saudável, tem a ver com a quebra do paradigma vigente do cinema de autor. Se qualquer um faz um filme, os diretores não poderão mais manter aquela aura mágica como antes faziam. Isso me parece extremamente saudável a médio prazo, mas a curto ou a longo prazo cria um problema de parâmetros para todas as instituições do cinema, como a crítica, os próprios festivais e sua seleção, os exibidores, onde os nomes passam a significar outra coisa. Mas, pior do que isso, me parece, é o fato, ainda não discutido abertamente, de que eu não me interesso tanto assim pela idéia de qualquer um fazer um filme. Já há filmes ruins o suficiente no mundo. O acesso democratizado aos meios de produção é lindo, sem dúvida. Mas e a questão do talento, da vocação, do artista. “Qualquer um faz um filme”. Tão maravilhoso quanto soe, também me provoca pesadelos. Fazer um filme não passa só por possuir uma câmera. Muito mais difícil é ter a idéia, o talento, a capacidade. Mais uma vez então, calma lá!

No entanto, o que esta Mostra de São Paulo tem deixado bem claro, na minha opinião, é uma última questão quanto ao digital. Uma questão quase etérea, uma questão metafísica. O fato é que o digital não é a película. Parece simples, quiçá simplório. Mas é muito complexa a questão. Muito maior que uma mera preocupação estética. Trata-se da ética e da filosofia do cinema. Quando estes rapazes Lumiere (e seus antecessores que me recuso a citar aqui) começaram com esta coisa da projeção coletiva do cinema, eles estavam criando algo muito mais mágico do que podiam imaginar. O fato é que a película, em suas várias formas, possui um poder alquímico de transformar e recriar aquilo que se põe em frente às lentes. Uma imagem projetada em 35mm possui, mais que uma nitidez, uma mágica que nossos olhos mesmo não conseguem captar. Não é por acaso que é tão difícil iluminar uma cena para o cinema, pois precisamos criar condições de luminosidade para a película que nosso próprio aparelho visual não necessita. Mas a película sim. Por isso, quando o digital surge com força, é preciso gritar um audível “Peralá!” Quem já viu o número de filmes em digital que eu vi, das mais diferentes tendências, sabe de uma coisa: a imagem digital é de outra natureza. Não estou aqui julgando uma simples beleza, volto a destacar. Não é este o problema. O problema sensorial é muito mais complexo. O que acontece é que a percepção da imagem em digital kinescopada ainda é muito diferente da película. Ela se adequa a inúmeros projetos, como os do Dogma. Mas não se adequa a todos os projetos, pelo menos ainda. Decretar a morte da película hoje, mais do que equivocado, é um crime. Um crime de sensibilidade.

Para citar dois exemplos desta Mostra: quem viu Liberdade sabe do potencial metafísico das imagens da natureza captadas pela câmera de Sharunas Bartas. Sabe ainda que um rosto humano em close, filmado em 35mm, adquire uma vida, um potencial de paisagem mesmo, que não é possível nem a olho nu. Liberdade em digital não seria o petardo filosófico-existencial que é. Seria uma mera “novidade”. Da mesma forma, o estupendo Canções do Segundo Andar, de Roy Andersson, com sua utilização da profundidade de campo, se feito em qualquer material que não a película, perderia toda sua áspera poesia, seu caráter de pesadelo em “tableau vivant”. Em suma, duas obras-primas não existiriam. É por isso tudo que eu, que estou longe de ser um pudico tecnológico, e ainda sou, a longo prazo, um entusiasta do digital, peço um pouco de paciência a todos. Não enterrem nosso caso de amor com a película de um dia para o outro, como se fosse algo puramente material. Como todo caso de amor, ele é muito mais bonito do que parece quando surge uma nova paixão. Esquecer seu valor é, mais do que apressado, um impulso quase adolescente de negação do pai. Deixem o pai viver fazendo o que só ele consegue. E dêem tempo para o novo filho achar o seu lugar sem pressão, nem euforia exageradas.

Eduardo Valente