Em torno de Lars Von Trier


Björk e Catherine Deneuve em Dançando no Escuro de Lars Von Trier

Dançando no Escuro é o filme mais esperado do Festival do Rio BR 2000, e isso por diversos motivos: a) o filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes; b) é a primeira vez (e talvez única, se quisermos acreditar nos depoimentos) que a cantora Björk é atriz; c) houve um bafafá enorme em torno de uma violenta briga entre a cantora e o cineasta Lars Von Trier, que a teria ameaçado diversas vezes; d) é um filme assinado Lars Von Trier, um dos maiores nomes do cinema europeu contemporâneo, e um dos nomes que assinaram o manifesto estético-publicitário Dogma 95. Tudo isso credencia Dançando no Escuro, mesmo antes de ser visto, como o filme-culto do Festival. E o que é mais apreensivo: só há até agora uma sessão programada desse filme.

Lars Von Trier já havia sido o foco das atenções na então Mostra Rio de 1998, quando foram apresentados os dois primeiros filmes-dogma: Festa de Família, de Thomas Vinterberg, e Os Idiotas, do Próprio LVT. A questão que se punha a propósito de seu trabalho era: estética ou mistificação? A questão que se coloca hoje é: em matéria de arte, até onde vai a manipulação? A história que se sabe, vinda direto de entrevistas da cantora islandesa, é que ela desde o começo não gostaria de ser atriz no filme, realizando apenas a trilha sonora. Como já estava sob contrato, teve que submeter-se às vontades de Von Trier que, ao que parece, fez questão de infernizar a vida de sua atriz no set de filmagens. Se o relato de Björk a respeito de seu trabalho no filme é doloroso, o relato de Von Trier é sereno e cínico, como bem já mostravam as despedidas que o próprio diretor dava ao fim de cada episódio de sua série The Kingdom, exibida recentemente no canal Eurochannel (TVA): "Björk não é uma atriz. Ela não interpreta, ela ressente as coisas. É como estar todos os dias com um moribundo que nunca morre", disse o diretor em sua conferência de imprensa.

Lars Von Trier é um fenômeno de publicidade. Ele consegue sempre uma boa exposição de seu nome e de seus filmes, coisa que muitos não perdoam. Mesmo antes da deflagração do manifesto Dogma 95, ele já havia assumido uma notoriedade mundial com Europa e com Ondas do Destino (esse último tendo sido Grande Prêmio do Júri em Cannes 96). Pelo seu tom sempre à beira da paródia e pelo aspecto passional e excessivo de seu cinema, ele vem pouco a pouco ganhando multidões de admiradores e de detratores. A partir de Os Idiotas, portanto, as posições passaram a ser mais claras (inclusive em Contracampo, onde houve duas posições completamente opostas sobre o filme). Goste-se ou não do trabalho de Lars Von Trier, o inegável é que a matéria-prima de seu trabalho é a manipulação de sentimentos, o cinema como artifício puro para alcançar uma realidade que muitas vezes é a realidade do além (tanto em Ondas do Destino quanto em Dançando no Escuro há morte e transcendência).

Em Cannes, Dançando no Escuro não foi uma unanimidade. Desagradou grande parte da crítica mais interessante – entre ela a quase totalidade dos críticos dos Cahiers du Cinéma, ainda a melhor revista sobre o assunto no mundo –, que preferiu atribuir toda a graça do filme à aura que traz Björk com suas canções. O fato é que Lars Von Trier não se importa nem um pouco em se fazer de vilão – coisa que realmente foi com Björk nesse caso –, e isso pareceu insuportável a alguns críticos. O subtítulo da cobertura de Cannes dos Cahiers foi: "Björk pour tous et Lars pour moi", trocadilho intraduzível que poderia ser porcamente traduzido como "Björk para todos e 'larsmentável' para mim". Alguns aspectos do filme foram apreciados, como a utilização das famosas cem câmeras nas partes musicais, mas no geral o filme foi considerado como um desgaste da fórmula de Ondas do Destino (caminho da cruz / sacrifício / santificação) e como um passo atrás na temática do cineasta.

Seja o que for Dançando no Escuro (e há tantas chances de ser uma maravilha quanto de ser uma bela enganação), é certo ao menos que trata-se de um trabalho esteticamente vigoroso, como todos os outros trabalhos do diretor. Lars Von Trier sempre esteve a um passo do patético; ele sempre fez desse limite o seu diferencial no cinema contemporâneo, e conseguiu galgar seu lugar nele. É possível que ele tenha dado um passo a mais, o passo fatal. Esperemos que não. Porque nem ele nem Björk merecem.

Ruy Gardnier.