Dolce,
de Alexander Sokurov


Dolce, Rússia/Japão, 1999

Dolce forma com Vidas e No Quarto da Vanda o tríptico de filmes que fizeram valer a pena a discussão em torno da produção digital nos festivais de 2000. Foram os filmes que avançaram a estética e a ética deste modo de produção, de alguma forma. Em oposição a eles, pode-se colocar Time Code, como o maior desperdício de boas idéias, e talvez ainda mais prejudiciais, uma série de filmes que se escoraram nos já vigentes clichês desta tão recente adição à gramática do cinema.

Dolce é um filme sobre memória e dor. Sobre as agruras da existência, e as marcas que o passado deixa. Basicamente, em enxutos 61 minutos, Sokurov deixa uma velha senhora japonesa narrar a sua própria vida, uma marcada por doenças, morte, traição, separação, guerra. O relato é impressionante, tanto quanto a imagem neutra do diretor, que se centra simplesmente no rosto desta mulher, em suas mãos, nas marcas da vida, no sofrimento em si. O ritmo mistura a lentidão japonesa à tranquilidade russa, levando a um mantra zen sobre o significado da vida.

Esteticamente, a fotografia que Sokurov usa lembra a de seu último filme Moloch, ou ainda a de Mãe e Filho, onde a permanente névoa, a distorção leve na imagem, criam um estatuto diferente de imagem que remete ao passado, ou mais ainda, de um local e tempo retirados do tempo e espaço. Talvez por fazer filmes eminentemente anímicos, Sokurov sinta esta necessidade de distanciar-se no naturalismo. No caso deste filme, por se basear em um depoimento real de tamanha pungência, é inevitável que em alguns momentos a extrema beleza plástica da cena, ou um certo exagero na avidez de mostrar tamanha dor, incomodem um pouco. Mas, vale por cada plano onde o olhar da mulher parece dirigir-se não somente para fora do quadro, como para fora do mundo, como se ela mesmo fosse pouco mais que um fantasma. No que Pedro Costa adicionou uma ética do real e Cavalier uma ética do humano e da imaginação ao estatuto da imagem digital, Sokurov completa com uma ética do espírito. Um exercício mais que qualquer coisa, quase um estudo, este filme acaba sendo um necessário complemento aos outros dois.

Eduardo Valente