O Dia em que me Tornei Mulher,
de Marzyiyeh Meshkini


Rozi Kezha Shodam
, Irã, 2000

Como se sabe, a situação da mulher na sociedade iraniana tem sido um dos principais temas do cinema de lá que nos chega. O que este O dia em que me tornei mulher traz como primeiro diferencial é o fato de ser dirigido por uma mulher. A principal diferença que isto causa é uma intimidade tal com o tema e, acima de tudo, com o imaginário feminino, que a diretora consegue escapar a camisa de força do panfleto ou da análise fria e distanciada de outros filmes, para instalar uma muito necessária poesia, um olhar que misture pungência com compreensão e carinho. O resultado é um senhor filme (sem trocadilhos).

Meshkini optou por fazer um filme em 3 episódios, numa estrutura que, logo se percebe, tentará falar de 3 fases diferentes da vida da mulher: a passagem da infância para a vida adulta, o casamento e a velhice. Em todos os três episódios, a diretora parte de acontecimentos cotidianos, e os empresta uma forte carga simbólica, onde a poesia domina a cena. Impressiona de saída duas opções pouco vistas no cinema iraniano: a primeira pela paisagem do litoral, das praias e do oceano. A segunda, de raça: quase todos os protagonistas do filme tem um traço étnico bastante diferenciado do que estamos acostumados a ver no cinema iraniano, parte deles sendo negros e outros com fortes traços orientais.

No primeiro episódio, a diretora mostra uma menina que, no dia do seu nono aniversário, é informada pela avó que vai virar mulher. Isso significa que ela não pode mais brincar com seu amigo. Negociando, consegue um prazo de até o meio-dia, horário que ela seguirá com a ajuda de um graveto que, de pé, como ensina a avó, indicará o meio dia quando a sombra sumir. Uma situação simples, mas emocionante por si só: uma menina vendo sua infância acabar quando sumir a sombra do graveto. Vemos então sua última hora de criança, o encontro com os amigos, e uma cena fenomenal envolvendo um pirulito, talvez a mais abertamente contestadora do filme. No fim, ela é carregada para casa, mas no meio tempo seu véu (símbolo maior da opressão à mulher) vai servir de vela na jangada dos amigos, uma imagem que vale um filme inteiro.

O segundo episódio é o mais ousado em linguagem pois passa-se o tempo todo com a câmera em movimento. Uma jovem sai de bicicleta pelo litoral com outras mulheres. Enquanto pedalam, seu marido chega a cavalo e a manda voltar para casa. Ela recusa, e ao longo do filme virão seu pai, um especialista em divórcio, os homens da tribo, seus irmãos. Todo o tempo, sua insistência em pedalar, em escapar serve de retrato do esforço necessário para que a mulher iranianaescape de seus limites. Ao final, como a menina, ela é forçada a voltar, mas também como no primeiro episódio o belíssimo plano final indica uma possibilidade de redenção, pois é um plano ponto de vista de uma outra mulher de bicicleta, que vai se distanciando da cena.

O último episódio é o mais fantasioso deles. Uma velha mulher vai a um shopping para comprar tudo que nunca teve na vida: móveis, geladeira, fogão, máquina de lavar, etc. Ela peregrina entre lojas e ruas, sempre com garotos carregadores atrás, levando as compras. Instala-se numa praia, onde "monta" seu apartamento. Seu objetivo: ao ver tudo que comprou tentar lembrar qual a coisa que está faltando. O episódio é o mais engraçado, e tem a poesia de volta no final, com as compras sendo levadas de balsa, montadas, para um navio.

O filme consegue ser tão mais político quanto mais poético, cada episódio possui cenas isoladas e um tom conjunto que mistura o desânimo pela opressão como destino, com um otimismo pela melhora. No final, a diretora fecha o círculo colocando as 3 personagens femininas em cena, enquanto a mais velha vai indo embora na balsa sem lembrar o que é que lhe falta. A resposta é do espectador, óbvia: lhe falta liberdade. Um filme quase irretocável.

Eduardo Valente