Crazy
English,
de Zhang Yimou
Fengkuang Yingyu,
China, 1999
Não há discussão:
Crazy English é, disparado, o filme-surpresa da Mostra. De alguns
filmes já se tinha ouvido falar muito, de outros se conhecia o trabalho
do diretor. No caso deste, embora Yuan já tenha exibido no Brasil O
Outro Lado da Cidade Proibida e 17 Anos (embora, no meu caso
pelo menos, este currículo não seja exatamente impressionante), não se
poderia jamais esperar as repercussões que seu documentário alcança. Sim,
pois Crazy English é um retrato do poder das imagens em movimento,
não apenas de retratar a realidade, mas principalmente de moldar esta
mesma aos interesses do diretor.
O que mais impressiona
no filme é a informação de que foi um trabalho contratado. Yuan foi procurado
pelo personagem de seu filme, o professor de inglês Li Yang, que queria
um documentário sobre seu inovador método de ensino que estava crescendo
a cada dia de popularidade. Não só Yuan aceitou, como percebeu a gravidade
do fenômeno que Yang representa, e conseguiu realizar um filme que é genial
em sua dubiedade. Ou seja: ele certamente agradou ao professor, e ao mesmo
tempo, com uma sutileza à beira da genialidade, fez um grito de alerta
contra o mesmo.
Para entender isso,
é preciso saber quem é Li Yang. Embora seja difícil descrever o seu trabalho
(apenas as imagens em movimento conseguem captá-lo), pode-se pensar nele
como uma mistura de Lair Ribeiro com Bispo Macedo com Hitler com Collor,
tudo num professor de inglês misturado com aeróbica. Eu falei que era
difícil explicá-lo. O espectador, desavisado, também demora a perceber
do que se trata esta figura que vai passando do bizarro ao pitoresco ao
assustador, muito rapidamente. Basicamente ele prega que a China só se
tornará grande quando seus habitantes tiverem confiança em si mesmos.
Para isso, precisam ser bem vistos pelo mundo, e portanto precisam falar
inglês perfeitamente. Eu sei, eu sei, parece hilário. E é, por cinco minutos.
Quando você começa a ver platéias de 30.000 pessoas repetindo e gritando
tudo que ele grita, dá para começar a se alarmar.
Porque os discursos
e as aulas dele são muito mais complexas do que parecem no início. Ou,
pelo contrário, muito simples. Pois ele percebeu, talvez intuitivamente,
o que todos aqueles citados acima perceberam também: as fraquezas das
pessoas, e o quanto elas estão dispostas a seguir cegamente a alguém que
indique um caminho. No caso, alguém que lhes dê um objetivo imediato (aprender
inglês), um motivo (ganhar dinheiro), uma vantagem (tornar-se mais confiante)
e uma ideologia (o nacionalismo). Tudo junto. Já começou a ficar assustador
não?
Pois bem, o genial
do trabalho de Yuan é que ele segue este mesmo caminho, sem usar jamais
a narração em off, ou letreiros, nada. Apenas pela forma como ele
vai filmando o professor, seja falando em público, seja dando entrevistas,
seja administrando seu negócio. No início, não entendemos o porquê do
filme. O assunto, embora engraçado, não parece valer um longa. De repente,
quando vemos a devoção do público, quando sentimos nos olhos e nas palavras
do professor o grau de fanatismo que podem atrair, vamos percebendo que
Yuan filma algo de sério, muito sério. Finalmente, quando começam a vir
palavras de ódio aos japoneses ("não podemos nos esquecer da humilhação
de 60 anos atrás"), de expressão ideológica ("a China pode dominar o mundo"),
de materialismo escancarado ("What do we want? MAKE MONEY!"), já não somos
pegos de surpresa.
Há cenas verdadeiramente
impressionantes, como a frieza do discurso ensaiado e repetido em diferentes
entrevistas, como a arguta observação administrativa dos caminhos do seu
negócio, como a cena dos soldados uniformizados tendo aula e gritando
e elevando os braços (o método do professor envolve uma bizarra aeróbica
que liga gestos aos sons do inglês, alguns parecidíssimos com saudações
nazistas) na Muralha da China (em alguns dos mais surreais planos já vistos),
como crianças de menos de 5 anos recebendo suas primeiras aulas, como
soldados femininas tendo aula felizes da vida cercadas de neve num frio
de rachar, como o professor liderando um grupo de pessoas correndo e gritando
(igualzinho a Collor). Em suma, não é brincadeira. Lembra demais coisas
muito sinistras que já vimos.
E Yuan parece estar
nos avisando que este rapaz, estas idéias, estão crescendo exponencialmente
na China. Não convém rir-se dele nem delas. Precisamos estar atentos.
Sua maior sacada é que ele filma como uma Leni Riefenstahl com um senso
crítico. Ou seja, claramente ele busca as mais impressionantes imagens,
mas ao invés de fazê-lo como louvação ou beleza estética, sua montagem
deixa claro que ele quer mostra o potencial para que estas imagens se
tornem assustadoras. E ele consegue. Um filme importante, brilhante. Uma
aula de cinema de guerrilha, de como subverter um contrato. Mais do que
isso, só esperando os próximos capítulos.
Eduardo Valente
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