Como
não assisti a nenhum filme oriental
ou "Lars Von Trier é Deus"

Denis Lavant e Grégoire
Colin em Bom Trabalho de Claire Denis
Embora
seja cedo para uma tentativa de balanço desta edição
2000 do Festival do Rio — falta a divulgação dos números
oficiais e ainda resta mais uma semana da tradicional "repescagem",
bem-vinda possibilidade de recuperação ou revisão
—, não seria de todo mal apontar, dentre um punhado de tendências
sugeridas ou não pela organização dos filmes em mostras
temáticas, aquelas que mais se destacaram: a utilização
extensiva do digital nos quatro cantos do planeta; a capacidade de renovação
dinâmica da cinematografia oriental; e a maciça presença
da sensibilidade e do tema femininos no que há de mais interessante
no cenário mundial.
Menos revelações
que confirmações de tendências já consolidadas
ou que vêm se desenhando há pelo menos uma década,
estes três fatores constantes deram a tônica para um festival
que segue, em sua orientação essencialmente comercial (devida
em grande parte ao inchaço orçamentário), a mesma
lógica da programação das salas "alternativas"
no resto do ano: pouco risco, critérios de seleção
discutíveis (para dizer o mínimo) e um gosto particular
pelo excesso. A crítica não tem o objetivo de reduzir os
acertos, que são inúmeros, sem dúvida, e que merecem
o mais alto elogio (seja na insistência mais que elogiosa nas retrospectivas,
nos nacionais inéditos, na programação latina ou
nos filmes que compõem a Expectativa); mas de um festival que se
propõe apresentar um painel extensivo (a palavra "vitrine"
presente no texto de apresentação é, de fato, mais
adequada), cuja ambição maior é a de tudo mostrar
(como confirma o inacreditável número de programas) da recente
produção mundial, pode-se esperar sempre algo mais que um
ditame de postura que valorize o óbvio, ditando gostos e eliminando
o risco das apostas. Nenhuma surpresa, portanto, nesta edição
do Festival. (Algumas causas estão muito bem colocadas nos dois
artigos de Eduardo Valente, dos dias 07 e 08)
Conforme determinações
não de todo estranhas e razões não de todo obscuras,
tivemos como sempre alguns dos trabalhos mais interessantes relegados
às piores salas e aos piores horários. Como A Prisioneira,
uma obra-prima dificilmente contestável da cineasta Chantal Akerman,
ou Bom Trabalho, filme que representa um salto expressivo no trabalho
de Claire Denis, exibidos somente na primeira semana sem legendagem em
português e na saleta 2 do Estação Botafogo (para
ficar com duas unanimidades da Contracampo); ou a concentração
da mostra mais significativa e mais aguardada (Ventos do Oriente) no último
fim de semana, o que obrigava, com ou sem venda antecipada de ingressos,
um estresse desnecessário em filas quilométricas para garantir
um lugar nas salinhas de 50 ou 90 lugares, além da necessidade
de amarrar três ou quatro programas num só dia sob o risco
de acabar sem assistir nada; ou, por fim, relegando as retrospectivas
a uma única sala (Museu da República, o que em nada ajuda)
ou esporadicamente em Niterói ou no Paço Imperial (o que
ajuda menos); exceção notável à de John Waters,
cujos filmes foram exibidos nas melhores salas e em horários perfeitamente
coerentes com seu público alvo — se você acredita que o trabalho
de Pontecorvo, Saraceni e Loach ou seus respectivos públicos não
merecem um tratamento à altura, as coisas podem fazer mais sentido.
Mais uma vez prevaleceu o "hype" (ou seja lá que expressão
se utilize hoje) articulado entre cobertura da grande imprensa e marketing
do festival, um acordo tácito que direciona a massa de espectadores
para eventos inventados, e quase sempre pouco expressivos — exceção
louvável à exibição única de Dancer
in the Dark, um golpe tão bem-sucedido quanto digno do caráter
marqueteiro (ou picareta, se preferir) de Lars Von Trier.
E tome Lars Von Trier.
Exposto direta ou indiretamente como nenhuma outra personalidade do Festival,
houve oportunidades de sobra para estabelecer ao menos alguma certeza
em relação ao dinamarquês: seu Dancer… foi
o filme mais bem-sucedido de todo o evento; dois documentários
(Os Humilhados e Os Exibidos) buscaram investigar seu trabalho;
dois filmes-dogma foram exibidos (além de vários outros
de inspiração no manifesto); e ele foi uma espécie
de patrono da mostra Via Digital.
Louvado na estatura
de semideus do cinema contemporâneo (algum mais exaltado chegou
a afirmar que ele É mesmo DEUS (!?) — afirmação que
abstenho-me de comentar em respeito às crenças alheias)
que o Festival do Rio lhe reservou repetindo último Cannes, Trier
emprestou seu rosto (ou máscara) a esta edição do
evento, junto com sua condição de principal expoente e idealizador
do Dogma95, ou seja, de um modelo de cinema baseado na junção
do aspecto libertário e da vocação comercial da tecnologia
digital. O que equivale a dizer que, em sua declaração de
desgaste de um modelo de filme de esquerda e de desgaste das próprias
ideologias que compõem este modelo (Pontecorvo, Loach), o Festival
do Rio BR 2000 aponta uma saída que valoriza uma política
de conciliação dos aspectos comerciais, mercadológicos
e tecnológicos, e a crença de que estes fatores determinam
per se o debate estético, que continua eternamente postergado.
Um discurso perigoso e traiçoeiro, ainda mal articulado, de implicação
nada saudável; mas também uma visão pouco clara de
uma "revolução" digital ainda em aberto, cujos
agentes continuam, por enquanto, indeterminados. É a grande briga
entre correntes opostas que buscam, cada qual à sua maneira, apropriar-se
da nova tecnologia e incorporá-la a seus discursos. O papel do
Dogma 95 como intervenção cultural autêntica está
em jogo.
A título de
resposta ainda tímida, Contracampo publicará em breve o
comunicado da cineasta Samira Makhmalbaf à comissão que
discutia no último Festival de Cannes os caminhos do cinema digital.
Samira soma-se ao coro de idealistas que buscam no cinema digital a revolução
tecnológica e econômica que soluciona o conflito arte-indústria
na chave de realização do sonho autoral da escrita "pura"
cinematográfica e na libertação das amarras industriais.
Seu apelo encontra um eco expressivo na famosa declaração
de Francis Coppola ao fim de Hearts of Darkness (o excelente documentário
sobre as filmagens de Apocalipse Now) e guarda as mesmas esperanças
do ítalo-americano quando este afirma que o cinema somente se tornará
uma arte quando o barateamento e a democratização dos meios
de produção alcançarem um estágio tal que
uma hipotética garotinha suburbana de cinco anos no interior do
Texas realizaria uma obra-prima com a câmera caseira do pai. Este
seria o ponto zero da arte cinematográfica, uma utopia talvez mais
próxima do que se imagina, mas cuja conquista não será
tão fácil quanto talvez se queira crer.
Fernando Veríssimo
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