Carisma,
de Kiyoshi Kurosawa


Charisma, Japão, 1999

O Festival do Rio nos trouxe grandes obras da maturidade (A Prisioneira, Yi Yi), grandes filmes perfeitos (Rosetta), filmes que se inserem perfeitamente no quadro do cinema de autor (A Humanidade), mas até agora não havia trazido uma grande peça bizarra, um grande monstro cinematográfico (como Ghost Dog e eXistenZ no ano passado). Agora, o quadro está completo: Carisma, primeiro filme de Kiyoshi Kurosawa a ser exibido no Brasil em vinte anos de carreira, é uma obra-prima de terreno pantanoso.

Os primeiros planos do filme nos colocam de imediato num lugar remoto, inóspito do cinema. A câmara no início do filme vê tudo de longe, descritivamente: o policial Yabuike dorme num banco do distrito até que é chamado para resolver um assunto; chegando lá, o policial percebe que um homem tem uma arma e mantém um gerente de recursos humanos como refém. Trata-se de salvar o homem de status, custe o que custar, dizem-lhe. Quando o policial se defronta com o criminoso, este lhe entrega um papel no qual se lê: "restaure a ordem do universo". Poucos momentos depois, quando o policial deixa a sala, o homem executa seu refém e é morto. A partir daí, todo o filme se estrutura a partir do dilema básico de Yabuike: como intervir numa situação em que há risco de perecimento?

A questão não é tratada de forma ética ou moral, mas sim de forma filosófica, a partir do segundo momento do filme. Yabuike, demitido, vai para a floresta tentar se restabelecer e dá de cara com um mundo estranho que exige decifração. De um lado, homens esquisitos; de outro, um homem que protege uma árvore; acolá, uma mulher que precisa matar essa árvore para salvar a floresta. Yabuike servirá nesse meio-ambiente como o curto-circuitador de todos esses estranhos lugares, passando um atrás do outro por todas as situações, tomando os pontos-de-vista de todos os personagens para desenvolver o seu próprio.

Carisma é a árvore em torno do qual gira a história: ela é uma árvore magnífica que deve ser preservada, segundo um, mas é a árvore que deve morrer a todo custo porque ela secreta pelas raízes um veneno que a logo prazo destruirá tudo a seu redor. Nos vemos diante do mesmo impasse do primeiro momento: em vista da morte, que posição tomar? Essa será a procura louca de Yabuike, loucura que é adotada absolutamente pelo estilo de encenação do diretor, com seu profundo rigor de composição e com o gosto quase maligno de colocar sempre os contrários em luta (paz/guerra, vida/morte, teoria/sentidos, ordenação/acaso).

Carisma é um grande filme filosófico: primeiramente por se ordenar diuante de uma questão filosófica, mas não apenas por isso. É filosófico sobretudo porque sabe conduzir uma pesquisa filosófica não pela reflexão, tarefa viciada de um pensamento ocioso, mas pela ação. Em termos de mise-en-scène isso se estabelece dessa forma: não um conflito com os deuses como no cinema "de arte" mais afetado (como nos últimos de Angelopoulos, por exemplo), mas pela purificação do cinema de gênero, cinema que engaja o espectador num jogo necessário de ilusão e necessidade. Carisma é um filme de conclusões, mas não de conteúdo: Carisma não é uma árvore ou outra, nem um homem ou outro; Carisma é a necessidade de cuidar, de tomar partido na existência de qualquer coisa, essa qualquer coisa variando a partir da necessidade vital de alguém. Filme ético sem moral normativa, Carisma é o filme de um cineasta que adora exercer o senso prático da liberdade.

Ruy Gardnier