Bom
Trabalho,
de Claire Denis
Beau Travail, França,
1999
Claire Denis declarou ter se inspirado diretamente
no trabalho tardio de Herman Melville (especialmente na novela Billy
Budd, Foretopman e em dois de seus poemas The Night March e
Gold in the Mountain) para realizar seu Beau Travail. Sinto-me
impelido a dividir com os leitores um trecho da crítica de Jonathan
Rosenbaum que procura justificar, emprestando a estas referências
um papel legítimo, as conexões sugeridas pela declaração
de Denis: "estes não são tanto trabalhos a se adaptar
ou lugares a serem explorados quanto são talismãs pessoais,
afrodisíacos estéticos, pontos de referência inspiradores,
encantamentos". Rosenbaum soma aos escritos de Melville dois filmes
decisivos da Nouvelle Vague, que tratavam diretamente da guerra da Argélia:
Le Petit Soldat, de Godard e Muriel, de Resnais.
De fato, ao largo de uma tentativa de adaptação,
todas estas obras emergem em Beau Travail servindo à nobre
causa inspiradora, mas também como estruturas de base, instâncias
organizadoras da narrativa e indicadores de leitura para um filme que
parece em princípio tão desligado da experiência contemporânea
quanto a própria Legião Estrangeira, que lhe serve de palco,
de tema, de obsessão.
A referência ao filme de Godard é
evidente na presença de Michel Subor como o capitão Bruno
Forestier (personagem homônima do protagonista de Le Petit Soldat),
a cujo passado brilhante, mas obscuro, o sargento Galoup (Denis Lavant)
alude em suas memórias como objeto máximo de devoção
e respeito. Servindo como referencial histórico, na medida em que
situa o filme como expressão unicamente possível do período
pós-colonial, mas também como comentário ao atual
estado de coisas do cinema francês (as bases da relação
Galoup e Forestier / Lavant e Subor podem ser entendidas, por extensão,
como uma proposta de diálogo vivo com a Nouvelle Vague), as remissões
ao filme de Godard ampliam de forma considerável o campo de atuação
de Beau Travail, elevando a condição de seu universo
intimista e autocentrado à de consciência histórica
e de declaração de princípios cinematográficos.
De Melville, Denis aproveita toda uma série
de temas e situações: a coletividade organizada em oposição
à figura do herói solitário, as condições
adversas e o eterno conflito com a natureza, as obsessões românticas,
o conflito na ordem simbólica entre destino e livre-arbítrio
e uma melancolia latente. Sua inspiração, no entanto, sempre
permanece livre e a recorrência destas figuras nem obedecem à
lógica literária nem respeitam o estilo de Melville. Alguns
procedimentos narrativos estão presentes, mas obedecem a uma ordem
poética muito particular e essencialmente cinematográfica,
como o tratamento brilhante dispensado à superposição
de tempos (passado/presente, objetivo/subjetivo).
Beau Travail está mais próximo,
na composição de seus ritmos sutis, da organização
musical que da literária na maneira como soluciona o habitual impasse
de dar forma cinematográfica à representação
da memória; assim como seu tratamento do corpo e do espaço
obedece mais às regras da dança (principalmente a contemporânea)
que do teatro. Menos que um rompimento com as bases dramáticas
recorrentes (no fim das contas, literatura e teatro são tão
fundamentais na construção de seu universo poético
quanto a música e a dança), a eleição destas
categorias de expressão a um patamar tão significativo traz
um quê de inusitado, mas também uma sede de experimentar
e um respeito por seu objeto e, em última instância, pela
forma cinematográfica que tanto falta nos cineastas contemporâneos
(não apenas nos franceses, diga-se de passagem) e que insere Beau
Travail na categoria tão rara de obra-prima.
Fernando Veríssimo
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