A Asfixia da Beleza e a Ausência do Belo


A beleza, definitivamente, é uma doença. Não é preciso remontar a Freud e à idéia de sublimação, muito menos à complicada idéia de "para si" hegeliana a propósito da tragédia grega. A necessidade de produção de beleza é uma das mais belas doenças do homem.

A função da beleza muda com os tempos: ela era considerada na Grécia Antiga a partir dos belos atos, ela passou pelo academismo naturalista da Renascença, pela entrada do social no século XIX e vê no século XX um estudo de sua própria decifração. Obviamente, quando um mundo já não pode dizer de si mesmo que é belo, é necessário que se estude o qu, afiinal de contas, é a beleza. O modernismo em arte teve essa função, e ela é ainda ativa hoje. Aos poucos, entretanto, vai perdendo espaço e dando lugar a uma outra noção de beleza, altamente pregnante e contemporânea: a estética da publicidade e do glamour, dos slogans e dos efeitos – do entretenimento, enfim. A beleza deixa de ser uma pergunta por si mesma e passa a assumir uma função meramente decorativa, mais preocupada com o novo naipe de procedimento técnico-estéticos para explorar do que com a consecução lógica desses procedimentos(no cinema americano, essa predileção se dá através da já famosa fórmula efeitos especiais X personagens).

Essa prova obstinada da nova estética por novos efeitos de choque e atenção – e aí não importa se tratamos de spots publicitários, videoclips, outdoors ou cinema – revela uma modificação profunda da idéia de "arte pela arte", tão comum ao fim do século XX em autores como Flaubert ou Oscar Wilde. Para esses autores, "arte pela arte" significava que era a precisão da linguagem que dava a interface entre o universo ficcional e a sociedade (enquanto o naturalismo de Zola prefigurava a precisão de representação da sociedade e dos processos sociais como essa interface). Se a Modernidade apostou na pesquisa de linguagem mais do que na contemplação dessa linguagem para dar conta de um mundo em crise – a crise da representação aconteceu ao mesmo tempo em filosofia e em arte –, o mundo de hoje fascina-se na contemplação da linguagem e na mistificação da técnica. O belo deixa de ser elemento problemático para tornar-se elemento de eficácia e efeitos: a passagem é feita da cultura da História para a cultura do entretenimento. O belo não é mais construído, ele é um ideal, obviamente mutável segundo as necessidades da moda – a se atingir. O ideal dessa beleza é a atenção do espectador, a certeza da captura de uma consciência por x minutos, e apenas isso.

Se a beleza já denuncia imediatamente uma noção de pathos, esse ideal de beleza é provavelmente a hipérbole dessa patologia. Ela não encarna mais a beleza como um pathos acessório à sociedade, como quando, depois de um dia de trabalho nada belo, ia-se ao teatro embelezar o mundo. Ela exige que o mundo seja necessariamente belo, é preciso que a cada minuto se faça obra de arte: no comercial de televisão, no site da internet, na praça pública e na imagem dos políticos. A beleza, desde o nascimento da televisão e seu primeiro efeito político – a eleição de Kennedy –, não é mais um pathos: ela é o pathos da sociedade contemporânea. O mundo contemporâneo está doente de beleza1.

Toda uma longa tradição, herdada da modernidade a partir de Brecht, Debord e outros, responde a essa necessidade de beleza, de estetização excessiva do mundo do jogo representativo, espetacular: Straub, Syberberg, Godard... Na atual Mostra, três filmes – dificilmente influenciados pela "tríade antirepresentativa" de cineastas dos anos 60-70 – vão dar a dimensão patológica dessa beleza e mostrar onde reside a angústia dessa patologia: Palavra e Utopia de Manoel de Oliveira, Branca de Neve de João César Monteiro e In The Mood For Love d Wong Kar-wai. Todos os três filmes são absolutamente diferentes de proposta estética, de andamento e de tratamento do tema. Mas esses filmes concordam que a beleza é um objeto a ser analisado e, o que é mais importante, concordam que o correlato de necessidade de beleza é a força da ausência.

Palavra e Utopia é mais uma experiência de "desrepresentação" por parte de Manoel de Oliveira, a não-naturalização da mise-en-scène para dar conta da perspectiva histórica dos personagens que o autor encena. A história é tema recorrente em Oliveira: se só tomarmos seus últimos três filmes, veremos que nos movimentamos da França do século XVIII para a Portugal do século XIX e para o brasil do século XVII (A Carta, Inquietude, Palavra e Utopia). O que permanece na obra de Oliveira é a resistência à espetacularização do cinema, o que ele opera pelo quadro estético, pela representação não-realista dos atores mas, acima de tudo, pela maneira como sistematicamente se fixa sobre imagens belas – estátuas, rostos de mulheres, belas paisagens, decoração de interiores – mas jamais demonstrando o mistério dessa beleza. Só que quando Oliveira filma a beleza, ele filma o vazio. Podemos lembrar da cena em que Leonor Silveira sai de quadro em Inquietude, deixando a tela filmar o vazio; mas esse é apenas o efeito mais patente da estética de Oliveira. A ausência é significativa em Oliveira mais pelo excesso de "mostração" do que pela falta. Cada plano de seus filmes sempre se dilata um pouco mais: o objetivo é atingir o pathos dessa beleza. A figura da asfixia da beleza no cinema de Manoel de Oliveira é a insistência.

O cinema de João César Monteiro baseia-se no cinismo com o espectador para fazê-lo dar risada da irrelevância do convívio social. Em Branca de Neve, Monteiro dilata esse sarcasmo ao passar 75 minutos do filme mostrando uma tela preta ao espectador enquanto os quatro personagens principais do conto Branca de Neve – a própria Branca, sua madrasta, o príncipe e o caçador – se reúnem para concluir que na verdade o conto era mentiroso e moralista demais, e que de fato a madrasta e Branca de Neve, amigas, participam de um único e mesmo processo de produção. A decisão de joão César Monteiro em colocar uma tela preta para (não) ilustrar o poema de Robert Walser participa do mesmo testemunho sobre a beleza: voltando à narrativa mítica moralista do conto de fadas, Monteiro nega representação espetacular à figura cristã e benfazeja da Branca de Neve para deixar o espectador à escutra das vozes dos quatro personagens, que não cansam de desfazer a imagem por demais moral do conto. A ausência nesse caso é a própria ausência de imagem no filme, que remete a uma ausência de teleologia moral na trama do conto de fadas. Branca de Neve e sua madrasta, duas faces de uma mesma moeda. Se é verdade que a ausência sempre opera por redução, a figura da asfixia da beleza no cinema de João César Monteiro é o sarcasmo, porque o sarcasmo é a redução – ao absurdo.

Desses três diretores, Wong Kar-wai é de longe o menos compreendido. Desde a exibição de Amores Expressos e da descoberta desse cineasta no ocidente, não deixam de comparar sua estética ao videoclipe. Não é sem razão, mas é insuficiente. A rigor, sua estética é a única do cinema moderno que dá a chave de compreensão da estética do videoclipe. Suas imagens são sempre as mais "belas", as mais cheias de efeitos, as mais fugazes... mas tudo que extraímos do cinema de Wong é a solidão, a incompletude e o vazio existencial, sempre acompanhados de uma obstinada esperança (que entretanto jamais se concretiza, que só existe enquanto esperança) na felicidade. Todos os motivos de beleza são repetidos à exaustão: os mesmos planos, os mesmos filtros de cor, as memas músicas, obsessivamente. A indefinição existencial é o correlato perfeito ao mundo da beleza de Wong, a fugacidade é acompanhada da desaparição, o começo do fim e a vida da morte. In The Mood For Love conta a história do nascimento e da morte de uma relação amorosa, pontuada por magníficas imagens repetitivas em slow-motion e pelos boleros cantados por Nat King Cole, repetitivos como a música de Shirley Kwan em Anjos Caídos e a "California Dreamin'" em Amores Expresos. Ao conectar o supra-sumo da estética videoclípica com o vazio existencial do mundo contemporâneo, Wong dá a perfeita definição da condição de vida do ocidente: uma tênue procura pela fugacidade do belo, mesmo que seja um belo de brincadeira. O cinemade Wong é o que melhor associa beleza e ausência, técnica e vazio. A figura da asfixia da beleza no cinema de Wong Kar-wai é a redundância.

Ruy Gardnier

 

 


1. Os paralelos entre o ideal de beleza da sociedade capitalista e a noção de beleza da ideologia do nacional-socialismo alemão não são poucos. Em La Fiction du Politique, Phillippe Lacoue-Labarthe mostra como o nazismo é antes de tudo um movimento de nacional-estetismo, a idéia de ser mais uma obra do que um povo. Entre o nacional-estetismo da Alemanha nazista e o estetismo contemporâneo, é só a palavra "nacional" que falta. Vivemos, então, num global-estetismo.