A
Prisioneira,
de Chantal Akerman
La Captive, França/Bélgica,
2000
A sexualidade masculina
(heterossexual) tem sido um dos principais temas explorados pelo cinema
contemporâneo, mas também uma espécie de persona não
grata das ficções, espaço de negatividade e de valores
perversos. A representação da figura do macho encontra resistência
cada vez maior entre os realizadores, recaindo quase sempre sobre estereótipos,
seja da ordem feminista ou da machista, ou esbarrando na caracterização
de novos ícones, compostos pelo desvio, pela perversão,
pela fragilização, pelo recalque, pelo ressentimento. Um
breve olhar sobre a galeria de algumas das personagens mais notáveis
dos filmes da última década comprova, sem deixar dúvidas,
este tratamento: o Javier Barden de Ovos de Ouro, o yuppie de Naked,
o Brad Pitt/Edward Norton de Clube da Luta, o Tom Cruise de Eyes
Wide Shut, o barbeiro de A Enguia, ou, por extensão,
as duplas James Spader/Elias Koteas de Crash, e pai e filho de
O Rio. Almodóvar ocupa, de certa maneira, o lugar de maior
expoente do crepúsculo da masculinidade, como se pode conferir
em toda sua obra.
A Prisioneira,
último filme da cineasta belga Chantal Akerman, apesar de colocar
no centro da cena mais uma vez a crise da sexualidade masculina, se insere
numa outra categoria ainda não muito codificada e sempre interessante:
a da visão feminina deste fenômeno, sempre bem-vinda por
arejar este tema tão sufocado. Retomando uma forma clássica
de fetiche, obsessão e perda à sua pequena tragédia
burguesa, Akerman vai buscar no Hitchcock de Vertigo sua inspiração
privilegiada, podando aqui e ali o fator de culpabilidade e o catolicismo
latente do mestre inglês.
Akerman está
mais interessada em explorar em detalhe a matéria crua que compõe
a relação entre Ariane (Syilvie Testud) e Simon (Stanislas
Merhar) — i.e. diálogo, encontro e desencontro, sexo; enfim, o
cotidiano de um casal — do que nos tempos fortes da narrativa ou nos símbolos
(aos quais volta e meia recorre) para dar forma à obsessão
de seu protagonista. Dois universos distintos, por certo, homem e mulher
obedecem aqui à eterna e estranha lógica da aproximação
e do convívio amoroso: um mundo feminino fechado, em segredo, cercado
de muralhas intransponíveis para o homem, sempre na tentativa de
invadi-lo, torná-lo claro, conhecido, regrado.
A liberdade narrativa
do filme serve, em suas elipses, em sua variação de tempos,
a duas causas distintas mas complementares: a investigação
do desejo de Simon, sua vontade de descobrir, sua vocação
para o fetiche e para o autoerotismo; e a construção sutil
do universo de Ariane, condicionada a ser objeto amoroso de Simon, prisioneira
de sua condição como de um labirinto existencial cuja fuga
improvável equivale à morte.
Menos em tom de parábola
que de crônica, Akerman, como Ariane, busca em uma espécie
de acordo tácito, que envolve o respeito pela diferença
e pela liberdade, sua solução utópica, seu sonho
impossível de união, mas marca sempre em cada plano a impossibilidade
de conciliação destes dois universos, que é aliás
onde reside toda a riqueza do relacionamento e a enorme beleza deste A
Prisioneira.
Fernando Veríssimo
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