No Clima para Wong Kar-wai


Wong Kar-wai (abaixo) fotografado por Christopher Doyle

O cinema de Wong Kar-wai é jovem, seja pela pouca idade do diretor (que conta 44 anos), seja porque ele começou a filmar há pouco tempo (seu primeiro filme, As Tears Go By, foi feito há 12 anos), seja pela presença constante de jovens como protagonistas. Caso se possa falar em uma obra wongiana - e eu espero que sim, pois é esse o meu esforço aqui - isso acontece pela regularidade com que filma (em 12 anos realizou sete filmes e tenta concluir o oitavo ainda este ano), mas principalmente porque há certos temas, certas questões que permeiam todo o seu trabalho. E é um pouco disso, procurando atingir pelo menos algumas dessas obsessões, que tentarei abordar alguns aspectos do cinema de Wong.

Deslocamento: é como se o mundo não fosse o lar de nenhuma das pessoas que transitam pelos filmes e isso se pode notar na figura de Takeshi Kaneshiro em Anjos Caídos (Fallen Angels, 1995) que, em não se sentindo parte do ambiente em que vive, passa as noites a arrombar lojas e a trabalhar nelas. Ele está sempre na propriedade de outrem, num espaço que não é o seu. Não há porto seguro, não há família e é esse sentimento de que não se pertence a lugar algum que é a força motriz, o que faz despertar para uma viagem até o que é próprio de si. Acontece de algumas vezes essa viagem se dar de fato no âmbito do espaço, como em Felizes Juntos (Happy Together, 1997) em que os amantes empreendem uma viagem até a Argentina, lugar onde pensam que conseguirão se encontrar.

"Ho Po-wing dizia sempre: se recomeçarmos do zero": essa é a frase que abre Felizes Juntos e é sempre o que se está querendo. É somente o recomeçar do zero que pode abrir novas possibilidades, diversas daquelas que se teve no momento anterior, que é o do fracasso. O maior expoente disso é o vinho que faz esquecer todas as memórias que se têm, de Cinzas do Passado (Ashes of Time, 1994). É esse o propósito, e ele provavelmente agradeceria por um tal vinho, do policial 223 (Takeshi Kaneshiro) em Amores Expressos (Chungking Express, 1993) quando chega no bar com a intenção de se apaixonar pela primeira mulher que lá entrasse. Já que o passado é aquele sobre o qual não se tem poder algum, aquele que não muda, que é absolutamente rígido, à vida só se pode dar prosseguimento em esquecendo tudo. Começando novamente, como se se tivesse nascido ali, no exato momento da decisão.

Retorno à origem: muitas vezes, ao sentirem-se deslocados, ou querendo começar de novo, se torna necessário voltar à origem. Yuddie (Leslie Cheung) precisa reencontrar sua mãe verdadeira nas Filipinas para poder continuar a sua vida, ele pensa (Days of Being Wild, 1990). Fai (Tony Leung), que já havia deixado Hong Kong uma vez, agora volta: o recomeço só se pode dar a partir do ponto de origem, do princípio. Ele precisa buscar as suas raízes, é nelas que está a chave para o futuro, um reiniciar livre do que passou.

"Hong Kong é um personagem": na Cahiers du Cinéma/Made in China o próprio, em um artigo, escreveu a frase citada. Que quer dizer Wong com isso? É que em seus filmes, em sua maioria passados em Hong Kong, a cidade exerce um papel fundamental, talvez o mais importante de todos. Pertinente aqui é lembrar que ela não tem necessariamente uma historicidade. Não que não haja elementos de natureza histórica, mas que a cidade é uma criação, ela é a cidade de Wong. Mais ou menos uma "Hong Kong vista por Wong Kar-wai". E como todas as criações de Wong, ela é sensual, é criada a partir do ponto de vista de sua concretude, quase um personagem de carne e osso.

Repetição: em entrevista a Bérénice Reynaud, Wong afirmou: "... para mostrar a mudança deve-se utilizar as coisas imortais. O tempo passa, as pessoas mudam, mas há muitas coisas que não mudam". E dentro de seus filmes há mesmo estruturas que se repetem, tornando situações quase iguais. E é desse 'quase' que Wong fala: em Amores Expressos a duplicidade é quase total. Lá há duas moças chamadas May, duas mulheres em perucas louras, duas aeromoças, dois policiais abandonados por suas namoradas. O que sobra então, o que não é repetição, são os detalhes. São eles que conferem singularidade a cada situação, tornando-as verdadeiramente humanas.

É cada um desses aspectos reunido em perfeita harmonia, pensada desde a articulação, com os outros que confere aos filmes a sua vida. E então o que observamos é um mundo povoado por gentes que não se sentem parte dele e que partem para uma busca do próprio. Há um ponto fundamental a ser destacado aqui, a questão da felicidade. É justamente a discussão de sua possibilidade o que emerge da junção das obsessões de Wong. E, ao contrário do que pensam alguns, que o cinema dele é pessimista, se prestarmos bastante atenção, veremos que não é. A questão da felicidade está intrinsecamente ligada ao conhecer-se a si wongiano e a sua aquisição se encontra justamente no caminho, no percurso que se faz até si. Pois para o homem a sua completude é a morte, ou seja, o homem é aquele que precisa estar em constante movimento, nunca se satisfazendo totalmente; nunca se sacia totalmente a fome, nunca se atinge o grau máximo da felicidade ou tristeza: sempre se vai ter fome novamente, ser mais feliz ou mais triste do que se foi até ali. É o caminhar, portanto, a vida do homem. E é isso que diz Michelle Reis no fim de Anjos Caídos. As suas palavras, que são as últimas palavras do filme, são pronunciadas enquanto ela está sobre a garupa da moto de Takeshi Kaneshiro, rapaz a quem pouco conhece e que lhe dá uma carona para casa: "Eu sei que o caminho é curto. Eu sei que não vai durar. Mas me sinto aconchegada assim mesmo".

É nesse aconchego em relação à vida, ao destino, ao que passou e se passará que está a verdadeira possibilidade de o homem ser feliz. E é aí que reside a beleza dos filmes de Wong.

Juliana Fausto