Rogério
Sganzerla encena
Savannah Bay de Marguerite Duras
Depois
de ouvirmos Carmen Miranda mostrar a Orson Welles os instrumentos nacionais
em Tudo É Brasil, não era complicado perceber que
uma das grandes preocupações da obra de Rogério Sganzerla
é o passado – o passado, diga-se, como pano-de-fundo sem o qual
se torna incompreensível sua extensão, o presente. Mas a
encenação de uma peça da escritora francesa Marguerite
Duras, notória por uma arte da lentidão, de um minimalismo
literário absoluto e da recorrência de lembranças
longínquas na vida dos personagens, não deixa de surpreender,
a ponto de nos perguntarmos o que poderia haver em comum entre a francesa
Duras e o brasileiríssimo Sganzerla. De fato, os dois partilham
uma preocupação com a memória, mas ela se desdobra
em manifestações muito diferentes na obra dos dois artistas.
Em Duras, é sempre um acontecimento determinante em algum momento
do passado que dá a dimensão angustiada do presente; em
Sganzerla, o passado é sempre motivo para uma reelaboração
cultural, um olhar-para-trás do artista em direção
de uma arte desaparecida (It's All True de Orson Welles, sambas
"desaparecidos" de Noel Rosa, o cinema "chanchadesco"...). O próprio
Sganzerla, em conversa após a encenação, é
o primeiro a negar um universo temático comum, apesar do interesse
confesso pela obra da escritora, de quem cita os livros e adaptações
para o cinema com desenvoltura. "Não tem nada em comum. Foi a Helena
Ignez que quis fazer a peça, ela é que teve a idéia".
E é nessa explicação que podemos encontrar, antes
de mais nada, um princípio de trabalho que circula numa
esfera bastante familiar: além de ter proposto a peça de
Duras, Helena também divide o palco com sua filha, Djin Sganzerla,
os diálogos embalados por uma trilha sonora escolhida pela filha
mais nova do casal, Sinai.
Savannah
Bay se desenrola como um grande diálogo entre duas mulheres,
uma senhora e uma "mulher mais nova". A mais nova se esforça por
fazer a senhora lembrar de um dia fatídico, há muitos anos,
à beira da praia em Savannah Bay (note-se a recorrência dos
temas do sudeste asiático em Duras: "India Song", Calcutá,
Indochina, etc.). Não bastasse duas mulheres presentes no palco
falando de algo que jamais se apresenta à vista dos espectadores
(primeiro paradoxo sobre a encenação), as duas sempre falam
na terceira pessoa do singular, o que aumenta toda a sensação
de enclausuramento do espectador (segundo paradoxo sobre a encenação:
aquela de quem se fala, a mulher do passado, é evocada na terceira
pessoa mas de fato é uma das que estão falando – ou as duas!).
Na verdade, parece que elas falam de um mundo em suspenso, de um mundo
em que, por um momento, tudo esteve em suspensão, perfeito, hierático,
mas apenas por um momento. É esse momento longínquo que
Savannah Bay tenta resgatar.
Mas
no que tange à encenação, os dois mundos artísticos,
o da escritora e o do encenador-cineasta, não podem conviver. O
diretor, então, conclama a humildade e faz questão de guardar
seu brilho para fazer brilhar Duras e as atrizes da peça. Na entrada
dos bastidores, está Sganzerla acompanhado de Fernando Mello da
Costa, cenógrafo: "As palmas são para ele; ele que é
o gênio da peça." Sganzerla sabe que os dois universos estéticos
– o seu e o de Duras – colidiriam se juntos. E se isso não seria
problema algum num filme dele, onde o caos interior definitivamente alimenta
a riqueza da obra mais do que prejudica, na transposição
poderia causar algum problema: "A direção é discreta,
é intencional. É uma peça delas (das atrizes, Djin
e Helena), elas (as atrizes) são o mais importante no teatro".
Mas essa humildade talvez seja a mais: em qualquer trabalho sobre a obra
de Marguerite Duras, o tom da fala é sempre o mais problemático,
sempre o mais difícil de alcançar: as falas sempre trazem
um estranho tom de confissão, uma emoção deslavada
misturada com uma impessoalidade profunda, com uma firme negação
da interioridade, um minimalismo brutal e um artificialismo que desmonta
qualquer tentativa psicologizante do teatro. E esse tom a peça
tem.
Na
transposição para a cena, um achado: por um belo momento,
sobe no som o barulho de mar e um enorme leque se abre, projetando em
vídeo as águas de Savannah Bay. Quando não é
o som das águas que emite raios de luz no passado, é uma
música em especial – na cena uma canção interpretada
por Edith Piaf – que faz a mulher relembrar-se. E é justamente
a música repetida que dá a chave funcional para o resto
da peça: é a reiteração contínua das
ações, das palavras e das frases (e, no campo da interpretação,
dos gestos) que dá a maior força a Savannah Bay.
Apesar
de toda a simplicidade e modéstia (de produção, de
intenções) nesse Savannah Bay, há algo que
não pode deixar de ser dito: nem que fosse pela curiosidade de
assistir a um trabalho novo de Rogério Sganzerla, de quem sempre
podemos esperar algo instigante, a ida ao teatro já teria valido
– mas a encenação tem suas qualidades, tão evidentes
quanto fartas. O que mais causa espanto é que, apesar de Sganzerla
morar há décadas no Rio de Janeiro, não foi sem bastante
atraso e dificuldade que Savannah Bay pode ser apresentado aos
cariocas: depois de estrear em São Paulo em outubro do ano passado
e ficar parada por um bom tempo, somente agora a peça chegou para
a pequena – e menos divulgada do que merecia pelos cadernos culturais
– temporada de duas semanas no teatro do Sesc/Tijuca.
O
que nos introduz num novo problema: ao que parece, é grande o esforço
coletivo para que o Sganzerla autor também tenha que viver no passado,
sua obra na memória passiva dos admiradores. Os filmes abortados
antes do seu tempo – diga-se: por motivos que lhe fogem – se acumulam.
Só de 97 para cá, perdemos a continuação d’O
Bandido da Luz Vermelha e adaptação de "Cavalo de Santo",
livro de contos de Luiz Afonso Costa, a se chamar Velas ao Vento.
Mas o que podemos dizer a respeito senão que – por mais que o "mercado"
ignore suas idéias, por maior que seja a dificuldade dele em levar
adiante seus projetos (que são muitos) e manter o contato com o
público – para nós, Sganzerla continua sendo uma figura
de proa da cultura brasileira?, que apesar das dificuldades ele é
uma figura cada vez mais necessária numa cultura caudatária
por natureza? Vale deixar o recado: como Julio Bressane já disse,
Sganzerla seria talvez o grande diretor de cinema popular brasileiro se
seus filmes não fossem alijados – pelos exibidores, pela crítica
estúpida demais para ele – de qualquer espaço maior nas
salas. Na verdade, em Sganzerla, é a rebeldia que afirma a força
da obra, ainda que a um preço bem alto. Não é essa
a conclusão a que se chega (que ele mesmo chega: "Heróico
é o cinema que sobrevive e resiste ao chamado coro dos (des)contentes")
no último de seus exercícios de autopromoção
à melhor maneira dos surrealistas, um belo artigo para o caderno
Ilustrada da Folha de São Paulo?
Como
se pode notar, à falta de imprensa capaz, é ele próprio
o maior divulgador de seus projetos. E a pretexto de ilustrar a pequena
(mas fundamental: onde estão os exibidores responsáveis
do Rio?) mostra que o Cinesesc, em São Paulo, realizou, paralela
às aulas do curso de cinema e montagem com Sganzerla (alguém
ainda duvida que ele é o gênio da colagem de imagem-som no
cinema brasileiro?), ele trouxe ao menos uma boa nova para seu público.
Abre
parênteses. E já que o assunto são as mostras: a retrospectiva
Belair, com os seis filmes da produtora fundada pela dupla Sganzerla-Bressane
no início dos anos 70 e prometida pela Cinemateca do MAM do Rio
para ainda este ano, teve que ser adiada para 2001 por falta de verbas
para a confecção de novas cópias. Fecha parênteses.
Agora
Sganzerla finaliza para breve seu próximo filme, Sob o Signo
do Caos, já em fase de mixagem de som. Mais uma vez ele toma
a lendária passagem de Orson Welles por estas bandas como pretexto
para falar do Brasil, de sua cultura e seu povo – e, claro, e tentar encontrar
uma ordem, uma tradição, dentro dessa desordem interior
que forma o país. O Brasil, que – e isso não é novidade
– é seu tema predileto: a sensação cada vez mais
forte é de que Sganzerla é daqueles raros e maravilhosos
realizadores que refazem sempre o mesmo filme (Godard, Glauber, Hitchcock:
isso, acreditem, não é para qualquer um). "Na verdade",
explica Sganzerla, "eu tinha preparado esse filme junto com o Tudo
É Brasil, desenvolvi os dois juntos sem saber qual lançar
primeiro. Resolvi que o Tudo É Brasil deveria sair antes".
Mas se a produção, ao que parece, finalmente está
bem encaminhada, o mesmo não se pode dizer da distribuição
comercial do filme: gato escaldado com o péssimo lançamento
que Tudo É Brasil teve, até agora o filme está
sem distribuidora em vista – Sganzerla não demonstra muito
entusiasmo, ao contrário, com o caminho tradicional por que passa
a maioria das fitas nacionais na via crucis do mercado. Sabe-se se lá
quando Sob o Signo do Caos vai poder ser visto e apreciado.
Uma
última novidade digna de nota: para os que não conferiram
o prodígio de montagem – de imagens, de idéias, de ideais...
– que é Tudo É Brasil, o filme acaba de ser lançado
em vídeo. Faz favor cobrar na locadora a fita.
Ruy
Gardnier e Juliano Tosi
|
|