O político como espetáculo

Os meninos de South Park
brincam de política
num dos melhores momentos do filme
1. O cinema acompanhou com interesse o começo da televisão.
Todo o novo star system, que a própria arte cinematográfica
ajudou a construir, foi cuidadosamente esquadrinhado nos filmes de Frank
Tashlin e Jerry Lewis: filmes como O Grande Sucesso de Rock Hunter
(Will Success Spoil Rock Hunter?, 1957) e O Otário
(The Patsy, 1964) são estranhas espécies de filmes
de tese e, nesse sentido, muito sérios misturados
com puro entretenimento adolescente. Mas o decisivo é que nesse
momento era o cinema que dava as cartas da sociedade, era ele que refletia
as mudanças que ocorrem na contemporaneidade. E isso incluía
a tv.
2. Hoje, o que se passa é a absoluta inversão de todo esse
quadro. Qualquer crítica que o cinema teça à televisão
não passará do mais profundo ressentimento, como o prova
uma infinidade de filmes brasileiros desde a década de 60 até
hoje. A tv, ao contrário, ama o cinema, e adora brincar com ele.
E não é à toa que desde os anos 80 a contemporaneidade
televisiva brinca com os formatos clichês do cinema: intertítulos,
filmes riscados, fotografia expressionista, tudo para "resgatar"
à luz da televisão um "passado nobre". Isso tudo
é muito mais homenagem tola do que um insuspeitado amor, claro,
mas isso não vem ao caso. A televisão tem desprendimento
suficiente para falar do cinema e de si mesma enquanto produto de comunicação
de massa. No cinema, o único que faz essa operação
é Godard. E qualquer outra autorreferência desse tipo vai
mais pelo lado da auto-indulgência do que pela reflexão,
como na pseudoprofundidade de Ridley Scott em Gladiador, quando coloca
na boca do empresário a frase "I'm an entertainer" (e
não foi à toa que toda a crítica "solene"
saiu em defesa da interpretação "política"
do filme quando a própria forma do filme renega o seu possível
"conteúdo" poderíamos dizer o mesmo de
O Show de Truman).
3. Voltando à vaca fria, o único cineasta que se sente
à vontade nos dois suportes é David Lynch. Ele é
o único cineasta com desprendimento suficiente para criar séries
de tv e, mais ainda, para, depois de acabada, transportar a série
para um de seus mais elaborados filmes Twin Peaks: Os Últimos
Dias de Laura Palmer. O caminho contrário, a tv o faz à
exaustão. Por puros motivos mercadológicos, dirão.
E não é de todo errôneo. Mas há outro lado:
o cinema ainda é, para a televisão, o lugar da afirmação,
o lugar onde se pode ver em formato grande as imagens que se faz, o lugar
onde os artistas gostam de ser observados. Por isso o grande número
de séries e desenhos animados que chegam à tv: Arquivo X,
Pokémon, e agora South Park.
4. Foi dito que as sitcoms são o novo reino da censura. Não
é mentira. Elas são em ficção o equivalente
da cultura do entretenimento (uma cultura que é propriamente ficção):
um breve momento em que se está aí para rir e "have
a good time" a expressão é tão boa em
inglês que seria inútil traduzir. Esse "tempo feliz",
dado pelo riso, é justamente conseguido através do riso,
como na belle époque hollywoodiana: enquanto o herói
positivo luta pela construção de sua família, o negro
servil faz piadinhas enquanto os bons modos não são
risíveis, os maus modos o são. Eis o pressuposto da ficção
wasp, puritana e moralista, que se repete à exaustão
na sitcom. Uma ressalva, contudo: Seinfeld, onde não há
limites para o risível.
5. De qualquer forma, South Park inscreve-se igualmente nesse
terreno do reino de censura, mesmo que negativamente. Pois o que é
mais politicamente correto do que ser politicamente INCORRETO? Qualquer
ato politicamente incorreto, se a sua graça for justamente ser
politicamente incorreto, não faz nada além de justificar
um estado de coisas que se gostaria de criticar. O politicamente incorreto
precisa do seu correlato correto para existir, e assim o confirma. Toda
a moral do filme fica clara no momento em que se declara guerra ao Canadá:
é preciso fazer o coro dizer todos os motivos "verdadeiros"
para as crianças terem se tornado o que são: mau controle
dos pais, uso excessivo de televisão, e todo aquele papo pra lá
de moralista da América. Negativamente, ele se inscreve na mesma
escola do ressentimento que filmes ultramoralistas como Beleza Americana,
Felicidade ou Magnólia. É apenas mais engraçado.
6. Se é certo que a sitcom domina o "reino da censura"
da cultura americana, esse papel já é realizado no Brasil
há décadas pelas novelas e pelas séries da rede Globo.
A discussão sobre se a tevê influencia a alienação
do povo, se o impeachment do ex-presidente Collor foi causado pela
televisão, etc., são todas discussões interessantes,
ou até fundamentais, mas não serão resolvidas aqui
(se é que é possível resolver essa questão
sem cair nos dogmas simplistas do esquerdismo elitista de um Adorno, por
exemplo). De qualquer forma, pelas figuras que ela coloca em cena (uma
imagem do Brasil, uma imagem do poder, uma imagem da boa vida, uma imagem
da riqueza...) e pelos personagens a quem ela dá vida (um gótico,
um comunista, um rebelde, uma filha desnaturada...), ela consegue uma
efetividade política certeira ao tratar em momentos "adequados"
temas como o perdão, o ânimo, o arrivismo, etc.
7. Por isso, nada mais significativo do que a escolha de passar O
Auto da Compadecida (em formato de sitcom) para o cinema. Aqui, pouco
importa que Ariano Suassuna seja um esquerdista de tendência regionalista
e que a Globo seja uma direitista de tendência universalista (ou
homogeneizante): o que importa é que os dois concordam profundamente
numa visão populista do mundo, de uma essencialidade profunda do
popular e da sabedoria do povo como fonte de mutação da
cultura brasileira. Mais importante do que suas diferenças, o mais
importante é que eles criam um mito, eles criam um relato que deseja
elevar uma imagem preconcebida da povo e uma imagem preconcebida de caminho
político. Apesar de todas as diferenças, ambas acreditam
que é preciso um ícone, uma figura transcendente que possa
encarnar uma totalidade (uma nação, um ideal). Nisso, direita
e uma certa esquerda convergem, e se há alguma discordância,
é no ícone exato a ser representado, pois a visão
de que é necessário uma figura à "herói
positivo" é necessária. Mais do que os meios de comunicação,
esse é um belo começo para se estudar a natureza do espetáculo...
Ruy Gardnier