O Profeta da Fome e o cinema novo
ou O Espetáculo da fome

O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla, de 1969, não deve ser visto apenas como mais um representante do movimento cinemanovista. O filme tem algumas particularidades que transcendem uma visão ideologicamente rígida de cineastas como Glauber Rocha e que fazem dele um exemplar solitário da autoreflexividade do Cinema Novo, particularmente.

O miserabilismo do Cinema Novo é exposto por Glauber, em seu Estética da Fome, como a grande originalidade dos cinemas terceiro mundistas, por ser um sintoma de uma sociedade faminta e carente de quase tudo. A fome seria o grande diferencial desse cinema em relação ao cinema pequeno-burguês, tão em alta no mercado europeu e também no latinoamericano:

"De Aruanda a Vidas Secas, o Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, discursou, analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens matando para comer, personagens fugindo para comer, personagens sujas, feias, escuras: foi esta galeria de famintos que identificou o Cinema Novo com o miserabilismo, hoje tão condenado pelo Governo do Estado da Guanabara (…) pelos produtores e pelo público – este não suportando ver as imagens da própria miséria." *

A fome se torna um ícone desse Cinema, uma bandeira cujo sentido se esvazia e perde sua força inicial. A fome como marketing de um Cinema que se quer com fome, justamente por que só é com ela. A fome como um espetáculo que se repete insistentemente e que, por isso mesmo, se torna uma representação da representação. A fome como o exótico que chama atenção do europeu e do próprio brasileiro distanciado dela. A perda no cinema de uma referência real da fome. A estilização dos homens que lutam por um pedaço de carne, o faquir que sobrevive ao recorde da fome…

É um Cinema que se quer político como expressão mas não como ação. O Cinema Novo adquire uma postura de revelador de uma realidade social deficiente, porém não se faz modificador dela. O cineasta seria somente um conscientizador da opinião pública dos problemas maiores da sociedade. É um cinema ineficaz como ação por que só toma para si a responsabilidade de "abrir os olhos daqueles que não podem ver", pretensioso e autoritário por se achar mais capaz de enxergar uma realidade social.

"Nós compreendemos esta fome que o europeu e o brasileiro na maioria não entendeu. Para o europeu, é um estranho surrealismo tropical. Para 1 brasileiro, é uma vergonha nacional. Ele não come mas tem vergonha de dizer isto: e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tristes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto (…)" *

Ineficaz também por que acabou tendo como público o protagonista pequeno-burguês do cinema que combate, um espectador que, em geral, vê a fome como o espetáculo que lhe é apresentado e como algo que deve ser combatido por alguém (que não ele próprio).

O filme de Capovilla se posiciona diante da fome de uma maneira diferente: não fala da fome em si, e sim da transformação da fome em espetáculo. É o espetáculo do espetáculo da fome. É nesse sentido que podemos afirmar que O Profeta pode ser visto como um filme metalinguístico. Se relaciona com seu objeto de maneira referente ao Cinema que o comporta, uma característica realmente nova dentro dos filmes do Cinema Novo.

O filme tratará do espetáculo da fome na medida em que traça todo um processo de transformação do instinto primário do artista em um objeto que ele usará, em um momento extremo, para sobreviver. Um processo que começa na simples constatação que os animais do circo estão sumindo e que passa à procura do exótico para suprir esta fome: seja como engolidor de giletes, seja como o homem que é enterrado vivo…Um processo que continua na antropofagia e no sacrifício extremado, o homem que dá um olho por um pedaço de pão, o homem que se crucifica para poder comer… O espetáculo faz parte da vida desse artista e a fome é o seu único instrumento de sobrevivência. Seu trabalho só se faz necessário por que tem fome, somente fome. A fome é o espetáculo do qual precisava, a industrialização da fome, a notícia. A fome na mídia, o cinema é a mídia. O cinema filma o cinema da fome. A industrialização da fome é o Cinema Novo, é o faquir deitado em seu caixão ganhando dinheiro para não mais comer. A fome ameaçando o sentido da vida do faquir, um estado em que nada mais é possível: comer ou não comer deixa de ser importante, o cinema cansa do espetáculo que criou. Os bem alimentados não têm mais fome de famintos. Os famintos viraram apenas lembranças para aqueles que se alimentaram deles.

Capovilla traz em O Profeta a referência de algo maior que o próprio filme. Industrializa a fome e se utiliza dela assim como a maioria de seus companheiros de Cinema socialmente engajado. Porém, ultrapassa a fronteira da simples constatação da existência da fome: ela é usada para representar não só uma sociedade que a utiliza mas também um cinema que a utiliza.

Marina Meliande