Days Of Being Wild (1990)

Feliz aquele que, sem lágrimas, consegue
tecer até o fim a tessitura de um dia.

Provérbio chinês

Days of Being Wild é o filme mais pessoal de Wong Kar wai, e também aquele em que Chris Doyle e William Chang começaram a trabalhar com ele. Além disso, é onde seu estilo, suas marcas emergem em toda a sua plenitude. A história se passa nos anos 60, mas se não fosse a menção disso nos primeiros minutos do filme, jamais se poderia localizá-lo temporalmente. Porque se trata de um tempo íntimo, tempo de lembrança, tempo do coração.

A trama gira em torno de Yuddie (Leslie Cheung), um Fei, palavra que diz os rapazes dessa época, cheios de brilhantina na cabeça e rebeldia na alma. E Yuddie tem mesmo um quê de James Dean, seja no penteado, seja no desequilíbrio em que seu espírito se encontra. Ele é o centro de Days of Being Wild, é por ele que Su Lizhen (Maggie Cheung) chora, amante abandonada, é ele que seduz, violento e genioso, a dançarina escandalosa (Carina Lau) com quem acaba morando junto. E, principalmente, é Yuddie que vive uma relação de ódio e dependência com sua mãe adotiva, desde que ela lhe contou não ser a sua progenitora verdadeira, sem, no entanto, revelar-lhe o nome de sua verdadeira mãe.

O filme abre e fecha com as mesmas cenas – uma bela paisagem, árvores e um céu de um azul esplendoroso, vistos pela janela de um trem – como se ele fosse uma reflexão sobre a vida, sobre o que passou. Sua voz em off, Yuddie gosta de evocar – metáfora de si mesmo – uma fábula sobre certo tipo de pássaro que, uma vez nascido, levanta vôo e passa a vida assim, voando. Se sente sono, dorme ao vento e só pousa uma única vez, no momento de morrer. Yuddie se considera o tal bichinho e seu comportamento se deve a isso: se não se apega a nada e nem a ninguém, é porque em seu interior ele sabe que precisa voar, voar em busca de si mesmo.

Logo no início do filme Yuddie conquista Su: ela trabalha em um bar de estádio e ele, depois de comprar qualquer coisa, se aproxima dela e diz que a moça há de sonhar com ele naquela noite. No dia seguinte o rapaz retorna e Su lhe diz que nada sonhara; ele, então, mostrando-lhe um relógio diz, com voz firme, que naquele momento eles foram amigos, estiveram juntos e que isso não se poderá apagar nunca. "No dia 16 de abril de 1960, às 15h, nós fomos amigos por um minuto". A voz de Maggie Cheung conta então que a partir daí Yuddie passou a vir regularmente e que passaram a se ver. Se ele algum dia a esqueceu, ela não sabia, mas afirma jamais ter esquecido aquele homem. E todo Days of Being Wild é sobre o momento, sobre o instante. Esse momento de amar Su se esvai logo – ela quer compromisso, quer que o pássaro pouse – e o moço acaba por deixa-la.

Sua nova namorada é uma dançarina impulsiva que desde a primeira noite passa a viver junto de Yuddie. Su vive o momento de chorar, de sofrer. E uma noite, parada em frente à casa de seu amado, conhece um policial (Andy Lau). Ela não tem dinheiro para voltar, ele lhe empresta algum ao mesmo tempo em que se apaixona. Alguns dias mais tarde eles se reencontram e conversam – Andy sonha ser marinheiro, mas precisa cuidar de sua mãe, Su lhe conta sobre o dia 16 de abril. O moço então dá o número de um telefone público à moça por onde passa todos os dias, esperançoso de que Su lhe corresponda os sentimentos.

Mas o momento dela é outro e Andy jamais recebe telefonema algum. Enquanto ainda podemos vê-lo a esperar ao lado do aparelho, sua voz nos conta – recurso mui caro a Wong – que pouco tempo depois sua mãe falecera e o jovem policial pôde enfim se alistar na marinha. É seu momento de viver, momento de ganhar o mundo.

A partir daí muito acontece e esta é uma das grandes belezas de Days of Being Wild e talvez de todo o cinema de Wong Kar wai: é que, em contando coisas, ele é capaz de fazer emergir muito sobre a vida; sobre a vida de cada um, sobre a vida de cada momento e sobre cada momento da vida.

Yuddie acaba conseguindo arrancar de sua mãe adotiva a identidade da mulher que de fato o pariu: é uma filipina e as Filipinas passam a ser então o local de destino do jovem que nunca se cansa de voar. Ou cansava. Acontece que ao associar a sua própria identidade à de sua mãe, isto é, ao assumir que apenas conhecendo a sua mãe ele poderia atingir a sua completude, que a chave para o conhecer-se dele estava fora de si, em sua mãe, em outrem, Yuddie se condena à morte.

A mulher que um dia abandonara o filho ainda bebê mais uma vez se recusa a tê-lo, a assumi-lo como seu. Ela recusa ao filho mesmo uma visão de seu rosto e ele retribui na mesma moeda em um das mais bonitas cenas do filme: Yuddie sabe que sua mãe o observa por detrás da cortina enquanto ele deixa a residência, mas, assim como ela não permitiu ser vista, o moço também não se vira, não lhe dá o seu rosto, não lhe dá nada.

A vida dele atinge o ápice aí, chega ao ponto onde nada mais pode a não ser retroceder: o ciclo se completa, Yuddie chega até sua origem, mas de maneira torta, tosca, o que o impede de poder recomeçar. O retorno ao início aqui, ao invés de indicar nova chance, como se verá mais tarde em Wong, indica o começo do fim, o momento de morrer.

Muito ainda se passa dentro de todas as tramas – e são tantas, mas a vida é mesmo assim – de Days of Being Wild, mas há um ou dois momentos dos mais memoráveis. Dentro de um vagão de trem, Yuddie, ao recordar a fábula do passarinho, se dá conta que um tal ser estaria, em verdade, morto desde o princípio. E mais uma vez é a sua vida que está em jogo: ele percebe que a sua condenação não foi proveniente senão de si mesmo e que ela é inevitável. Essa inevitabilidade está intrinsecamente ligada à maneira como ele viu a própria vida. Viveu-a como proêmio de algo, ansioso por alcançar o que estava sempre além, sempre depois. E foi assim, esquecendo-se de que a totalidade da duração da vida é a soma da totalidade de cada momento vivido em sua plenitude que Yuddie, em reencontrando suas raízes, em descobrindo ser pouso, de fato morre.

Morte que, antes de ser física, se dá espiritualmente. Os últimos meses que passa nas Filipinas são de dissipação. É na sarjeta que vai encontra-lo o agora marinheiro Andy Lau, que acaba por recolhê-lo; Andy é a pessoa com quem Yuddie passa seus últimos momentos. E alguns minutos mesmo antes de morrer, o jovem Fei é inquirido por Lau: que fez você no dia 16 de abril de 1960, às 15h? Yuddie sabe do que ali se fala, ele sabe que o rapaz conhece a sua identidade. E pede a Andy para, caso reencontre Su, minta e diga a ela que ele, Yuddie, não se recorda de nada. Mas reforça: "o que realmente importa, disso eu me lembro".

No fim de sua existência, do seu cambiar desvairado por entre gentes e lugares Yuddie se dá conta que viver é tecer os fios que compõem a trama de cada dia. Ele costumava crer que só seria capaz de saber a mulher que mais amara em sua vida quando esta terminasse. Perto do fim se apercebe, talvez arrependido, que não viveu, que esteve morto desde o início da vida, ou melhor, desde o momento em que fixou um ponto de chegada fora de si.

Days of Being Wild é um filme sobre o tempo, sobre a sua relação com as pessoas e destas consigo mesmas. A genialidade de Wong Kar wai o faz falar de um tema que se pode pensar abstrato de maneira sensual, concreta. Cada ator e localidade têm sua materialidade explorada nas diversas possibilidades que possui; se seu cinema é uma poética de corpos e de lugares, aqui ele os produziu de maneira primorosa, posto que são tão belos como complexos e verdadeiros tanto os personagens como os líricos anos 60 deste filme.

Juliana Fausto