O Circo da fome e
seu faquir subdesenvolvido


 

Por Alex Viany

Dos textos publicados na época do lançamento d’O Profeta da Fome, o artigo de Alex Viany é provavelmente o que melhor documentou as propostas de Maurice Capovilla na fatura da fita. O artigo – escrito logo após O Profeta ficar pronto e meses antes de sua estréia, em junho – tem como base (é daí que as citações foram tiradas) uma carta pessoal de Capovilla a Viany que pode ser encontrada (assim como o texto aqui reproduzido, mas infelizmente com vários trechos apagados) nos arquivos da Cinemateca do MAM. Trata-se de uma reportagem simples mas nada corriqueira e sem dúvida bastante esclarecedora do que é O Profeta, e que ganha especial valor se constatarmos que de lá para cá muito pouco se comentou do filme – na verdade, muito pouco se assistiu ao filme: no Rio de Janeiro, foi em 94 sua última exibição em cinema antes do Festival de Cinema Universitário desse ano; e fora isso, em 96 a TV Bandeirantes o programou numa das madrugadas dedicadas aos filmes de Zé do Caixão (a salvação, mais uma vez, vem do Canal Brasil, que deve exibi-lo nos próximos meses).

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Maurice Capovilla faz questão de dizer que a idéia de O Profeta da Fome surgiu quando ele e Fernando Peixoto leram um ensaio de Glauber Rocha, A Estética da Fome.

– A justificativa teórica do filme está naquele ensaio – acrescenta o cineasta. – E, nesse sentido, o filme é dedicado a Glauber e às posições que tem assumido.

O Profeta da Fome é também, em verdade, o primeiro filme pessoal de Maurice Capovilla, se bem que ele não renegue a experiência de Bebel, a Garota Propaganda, sua primeira longa metragem. Tem mesmo todas as características do filme de estréia de um cineasta de talento, que joga na primeira obra de ficção as múltiplas idéias surgidas em muitos anos de militança como espectador e cineclubista, crítico e professor de cinema, e, finalmente, documentarista.

UM BACHAREL NO ESPORTE

Nascido em Valinhos, São Paulo, em 1936, Maurice Capovilla é bacharel em Teoria Literária, mas desde 1962 começou a escrever sobre cinema em jornais e revistas de São Paulo. No mesmo ano, realizou seu primeiro filme, União, semidocumentário mudo de curta metragem. Em 1963, estagiou no Instituto de Cinematografia da Universidade Nacional do Litoral, em Santa Fé, Argentina. Em 1964, produziu o semidocumentário Meninos do Tietê, que representou o Brasil no Festival dos Povos de Florença. Em 1966, fez dois documentários esportivos, Subterrâneos do Futebol e Esportes do Brasil, ganhando então o primeiro prêmio do festival do filme Esportivo de Cortina d’Ampezzo.

Finalmente, em 1967 Capovilla passou à longa metragem de ficção com Bebel, onde, partindo de uma história de Inácio de Loiola, seguiu a trajetória de uma moça pobre que usa sua beleza para abrir caminho no mundo da publicidade e da televisão, e que, inexoravelmente, acaba transformada em objeto de prazer. Apresentado no Festival de Pesaro, em 1968, o filme de estréia de Maurice Capovilla foi recebido com simpatia pela crítica internacional.

Mas, agora, com O Profeta da Fome é que ele verdadeiramente se projeta e se define como uma das mais importantes individualidades do cinema brasileiro. Milagre de produção O Profeta da Fome é um filme barato que parece caro. Tem cenas feitas em São Paulo, mas a maior parte das filmagens foi realizada no interior do Estado, em pequenas cidades quase tão primitivas como as do Nordeste, onde os atores se misturaram esplendidamente com as populações locais.

UM ATOR EM DUPLICATA

Para o papel-título de O Profeta da Fome, Capovilla escolheu seu colega José Mojica Marins, que deixa de ser o Zé do Caixão para ser o faquir Ali Kahn; e, dando-lhe a voz de Paulo César Pereio, o cineasta construiu de fato um novo e eloqüente ator. Outro papel importante, o do domador do falso leão, coube a Maurício do Vale. Sérgio Hingst é o dono do circo, um pequeno circo do interior, que, durante algumas semanas, serviu de base para a produção. A excelente fotografia é de Jorge Bodansky, enquanto Flávio Império fez a cenografia e o vestuário (inclusive a fantasia do leão).

O filme divide-se em um prólogo e 10 capítulos: Nem Só de Pão Vive o Homem, Crescei e Multiplicai-vos, Comei-vos uns aos Outros, Olho por Olho, A Paixão do Incrível Sofredor, A Tentação do Demônio, Atualidades do Velho Mundo, Industrialização da Nobre Arte de Passar Fome, Devagar com o Andor e De Hora em Hora Deus Piora. Por outro lado, o diretor procurou dar às cenas quatro diferentes tratamentos cinematográficos. Nas primeiras partes, desenroladas no circo, buscou um estilo de comedinha circense.

– O circo é tradicionalmente visto como espetáculo de variedades, isto é, um conjunto de números de trapézio, malabarismo, animais amestrados, etc. Nas conversas que tive com os irmãos Seyssel, tradicionais artistas de circo de São Paulo, eles me afirmaram que o circo, para eles, ainda é e nunca deixará de ser um espetáculo de variedades. Mas acontece que esse circo acabou. O que existe é a comedinha, isto é, um drama em vários atos, representando até bang-bang, como cheguei a ver no interior de São Paulo. O circo mambembe não tem mais poder aquisitivo para montar espetáculos com artistas especializados. Como que queria apresentar o circo com os números que faziam parte do tema inicial (colocação do problema da fome) e da estrutura do filme, tive de misturar as coisas, para não deixar de lado a tradição cultural e não perder o vínculo com a realidade. Todo o circo é, portanto, uma farsa, no estilo da Commedia dell’Arte, mas partindo da realidade cultural e vivida brasileira.

UMA ESTÉTICA DA FOME

Já no prólogo, quando o faquir e o domador lutam por um pedaço de carne, Maurice Capovilla coloca o problema da fome.

– O segundo capítulo, Crescei e Multiplicai-vos, é outra coisa, um parênteses onde procuro colocar o problema da mulher. Eu quis representar o drama da mulher brasileira, vítima de sua condição social, eternamente presa ao domínio dos homens. Na miséria, então, a proliferação aumenta; e, pensando nisso, bolei aquela cena em que a mulher sente crescer o feto que nunca mais a abandona – espécie de metáfora de uma condição real da mulher subdesenvolvida do Terceiro Mundo. O terceiro capítulo, Comei-vos uns aos Outros, é a colocação da antropofagia como saída desesperada para o problema do grupo. Tudo vem sendo exposto aos poucos: o número das facas e espadas, a morte e o enterro do mágico, o enterrado vivo, o palhaço louco e, enfim, o conflito entre o domador e o dono do circo, do qual surge a idéia de se comer gente em público.

No quarto capítulo, Olho por Olho, que quis ser uma fábula dentro de uma fábula, Maurice Capovilla muda tudo: a paisagem, a lente, a interpretação dos atores.

– É, na verdade, um canto épico. Mas eu não quis representar o Nordeste, nem o cantador de feira; a forma é da música de cordel, mas está tudo estilizado, para se tornar mais compreensível e nacional. Colhi a história num livrinho de cordel que encontrei no Nordeste, adaptei alguns versos, cortei muita coisa, e incluí a personagem do cego cantador que conta a história para os protagonistas do filme; e, por força de um encantamento, o faquir e o domador passam a viver a história que está sendo contada. Montei a seqüência no estilo do teatro épico, brechtiano, onde as coisas são mais reais do que realistas. Tudo é encenado em mímica, tornando-se assim mais didático, mais afastado e, portanto, mais essencial.

UMA REALIDADE DO ABSURDO

Nos dois capítulos seguintes, A Paixão do Incrível Sofredor e A Tentação do Demônio, Capovilla emprega o terceiro tratamento. Pode-se dizer que é um retrato da realidade brasileira, incapaz de ser superada pela imaginação ou pela fantasia. Faminto, o faquir subdesenvolvido descobre que vale a pena passar fome; mas, fazendo-se pregar numa cruz, ao mesmo tempo estimula o misticismo do povo. E, na realidade muito especial da filmagem, o faquir terminou por atrair centenas de curiosos, muitos dos quais plenamente dispostos a acreditar naquela figura de crucificado.

– Como eu queria retratar o povo, fixei-me naquelas caras e fui tratando delas até explodir naquela onda de misticismo. Não precisei mais do que paciência e um pouco de trabalho para ir enfileirando aquela gente, para fazer um retrato deste Terceiro Mundo. Em A Tentação do Demônio, há o encontro entre a condição e a vocação, ou melhor, a escolha da profissão baseada na única experiência da personagem: passar fome.

O sétimo capítulo é um documentário sobre a fome no mundo, onde o cineasta procura abrir um pouco o filme, "que tendia, até esse momento, a ficar enclausurado em torno do protagonista."

Nos três últimos capítulos, Maurice Capovilla estabelece um quarto tratamento cinematográfico.

– É aí que o filme deixa de ser um simples retrato da realidade para ir às últimas conseqüências do absurdo. Por isso, passo para um tom de teatro do absurdo, ou coisa parecida. Um pouco dentro do espírito, talvez, do Garcia Márquez de Cem Anos de Solidão. Só vim dar conta disso, aliás, quando li pedaços do livro, depois de o filme estar pronto.

Alex Viany

Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 22-23 de fevereiro de 1970