Entrevista com Maurice Capovilla (3)

 

E foi depois d’O Profeta que você foi trabalhar na televisão?

Antes, em 1971, eu fui fazer um filme chamado Noites de Iemanjá – esse é um filme de encomenda. Depois, em 73, que eu fui fazer Globo Shell, que foi quando eu comecei na televisão. Eu também achava que a televisão era um espaço ainda possível de você exercer alguma coisa ligada ao audiovisual.

Nesse época, em 73, você realizou A Última Noite de Lampião, que foi o segundo maior público da televisão no ano, teve 30 milhões de espectadores.

Onde você conseguiu essa informação?, eu não sabia disso.

Eu não me lembro agora, mas eu anotei de em algum lugar.

É um filme interessante, um documentário de reconstituição, com atores e depoimentos, 28 ou 30 depoimentos. E aí eu fui fazer documentários, fiz vários nesse período de 73 a 75. E depois eu dirigi O Jogo da Vida.

O Jogo da Vida é uma produção bem ao estilo da Boca do Lixo, não?

Também, mas com certas condições, eu tinha uma co-produção com a Embrafilme, tinha um certa condição de fazer. O filme foi feito com todas as condições, mas dentro daquele espírito mesmo de filmar na rua. Você vê que eu tive o elenco que eu quis. Bom, eu queria o Grande Otelo para fazer o Malagueta – mas o Otelo viajou com a mulher para fazer uns shows. Então eu chamei o Lima duarte, que assumiu o papel.

E o Maurício do Valle também, que é o ator mais constante nos seus filmes.

O Maurício é o meu ator predileto!

Ele está sensacional no papel do Bacanaço, ele é muito instintivo.

Ele é muito performático, você vê que ele tem diferenciações, não é um bruto. Você precisava explicar o personagem, como era – e ele entrava, tranqüilamente. Era uma grande figura humana, uma pessoa lindíssima, você precisava ver. De uma fidelidade impressionante. Em todos os meus filmes: quando eu ia começar um projeto qualquer e encontrava com o Maurício ele me dizia: "Como é? Tem um papel pra mim?"

E o personagem dele é o melhor do filme, é o que melhor representa aquela agressividade meio difusa do ambiente.

Você leu a novela do João Antônio?

Não, ainda não li.

A novela não tem os flash-backs, eu que criei porque tinha que explicar quem eram esses caras, eu não conseguia fazer um filme só no presente. Eu tentei reconstituir o passado deles, quem são. Eu não sei se isso melhorou ou piorou a idéia do filme, mas somente a viagem pela noite, o livro, não tinha material suficiente dentro da história. Eu achava que tinha que ter uma referência de quem eram aquelas pessoas, de onde vieram etc. E dentro da novela do João Antônio o Bacanaço só poderia ser o Maurício do Valle, não teria outro.

Como o Ali Khan só poderia ser feito pelo Mojica, não?

É, exatamente. Ele descreve o cara e você diz: esse é o Maurício. O Perus, na novela é mais jovem, ele é um garoto.

É, volta e meia eles falam isso no filme, chamam ele de garoto.

Mas eu tinha uma ligação com o Guarnieri, que trabalhou também comigo no roteiro, nós éramos sócios numa produtora, estávamos fazendo teatro com ele, e acabou que eu fiquei com ele para o papel. Ele gostava também do livro, adorava. Mas fica um pouco deslocada a falta da idade certa, porque ele é paternalizado, ele é utilizado pelo Bacanaço para ganhar dinheiro. Era um garoto que no filme tem quase a idade quase do Maurício, uns 40. O Lima Duarte entrou direto no personagem, fez um outro Malagueta, que é negro no livro, tanto que seria o Grande Otelo.

É impressionante no filme como o ambiente vai acabar levando as pessoas a viverem daquela maneira, com a agressividade deles, a maneira de se relacionarem. O Bacanaço só vai se relacionar com as pessoas a partir do momento em que ele puder tirar algum proveito: ele só vai procurar a mulher dele quando precisa de dinheiro ou quando tem algum interesse sexual, senão ele bate nela ou dá no pé; quando ele está na salão ele só quer saber das pessoas de que ele vai poder tirar algum dinheiro..

E com uma vantagem: ele é o jogador, ele utiliza as pessoas. Você que ele está sempre vestido à caráter, de terno branco. Ele que, de certa forma banca, é o banqueiro dos dois. A novela é fantástica – eu, inclusive, não acredito que tenha chegado ao nível capaz de passar aquilo que o Antônio passa, que é um mundo à parte, um mundo diferente. Eu freqüentei esse lugares – porque eu sei jogar: também não vou fazer um filme sendo ignorante no assunto. Eu jogava bem, eu sempre joguei bem – na época que estudava eu ia lá e ficava jogando sinuca. Mas não como o João Antônio, porque ele realmente viveu aquele mundo – e re-produziu o mundo literariamente de uma maneira impressionante. Os personagens que até hoje existem: aquele Carne Frita, é o real, é um dos maiores jogadores que tem.

O do final do filme?

Não, o carequinha que aparece antes. O do final do filme é o novo. São dois jogadores: é o do meio do filme – quando eles estão passando pela avenida São João, entram num bilhar e ficam de espectadores – aquele que mata todas as bolas. Eles vêem que não dava para jogar porque ali estava o maior jogador de todos os tempos, chamado Carne Frita – é um moreninho, baixinho. E já estava quase cego, então ele jogava meio que vislumbrando as bolas. O outro, eu não lembro o nome, já era o novo jogador que ganhava de todo mundo.

E como é que você orientou a filmagem das cenas na sinuca? É impressionante: porque é algo que depende do que vai acontecer na mesa, de onde a bola vai cair...

Se não fosse o Dib Lutfi não se conseguiria fazer. Tem seqüências – ele filma com o olho aberto, um olho no visor e o outro também aberto, sempre foi – em que ele enquadrava e já intuitivamente ia buscando a posição contrária a banca, entendeu? É um negócio fantástico.

Eu fiquei pensando como é que ele fez aquilo, é impressionante.

Cada jogo era umas 10 ou 12 tomadas: numa ele acertava a posição mas a câmera tremia um pouco – ou a bola não entrava...

Tem uma partida inteira feita num único plano, se eu não me engano.

Foram dois jogos, são dois que ele faz num plano só: um que é pegando lá de cima, que ali ele não move, e aquela do jogo final.

Essa última que é maravilhosa: a câmera fica o tempo todo em movimento, acompanhando o jogo, pegando uma hora de cima, mostrando mais a mesa, depois de baixo, mostrando o jogador.

A câmera gira em torno da mesa inteira, e a equipe toda atrás. E eu ficava segurando ele pelas costas, também dando umas indicações em função do jogo, porque eu tinha experiência: a bola vai para lá então você tem que vir para cá. E ele ia exatamente na caçapa onde iria ser jogada a bola. Eu até hoje não sei como é que deu certo aquele negócio.

E você trabalhou com o João Antônio na adaptação, mas eu li numa entrevista que ele não gostou muito do filme, que deveria ter sido mais sujo, filmado em preto e branco...

Houve uma história que é a seguinte: na verdade, eu nem cheguei a trabalhar com o João, eu fiz o roteiro com o Guarnieri e mostrei para ele. Ele aprovou o roteiro e aí fizemos um contrato com a Embrafilme, um contrato de direitos, que era em duas parcelas: uma parcela inicial, que ele recebeu, e outra que seria no lançamento. Essa do lançamento atrasou, uma enrolação com a Embrafilme, e ele de repente ficou achando que não havia recebido o devido, enfim. Não era problema de roteiro, depois que ele começou a criticar o roteiro, mas era um problema de pagamento de alguma coisa

Essa entrevista era mais ou menos recente, quer dizer, ele ficou com isso na cabeça.

Ficou. Nós tínhamos uma amizade e nunca mais nos falamos, para você ter uma idéia. Por causa disso. Por problema de parcela de direito autoral.

E de 77 a 80 você não fez mais cinema?

Em 77 eu ainda faço Os Homens Verdes da Noite, é um documentário para a Globo que foi proibido. Depois eu faço Raízes Populares do Futebol, que é uma revisão do Subterrâneos, mas usando outros jogadores – o Zico, um dos episódios é com ele. Em 79 eu vou para a Bandeirantes, fazer novela, O Todo Poderoso – é uma novela que eu coordenei, dirigi, fiz supervisão geral... Em 81 eu fiz O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino, esse é um filme interessantíssimo. Tem também A Crônica à Beira do Rio, que é uma séria de crônicas do Rubem Braga que eu reuni, A Mulher Diaba e O Princípio e o Fim. Esse é um projeto de cinco, seis longas, eram telefilmes, de uma hora e dez, uma hora e vinte mais ou menos, que eram para serem feitos um em cada estado: era Bahia, Minas, Pernambuco, Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul – o da Bahia e o de Minas acabou que não foram rodados. São quatro filmes com histórias regionais. Depois disso eu fui para Manchete.

Eu estou vendo aqui na sua filmografia que você também dirigiu com o Saraceni o filme oficial da Copa do Mundo de 78! Como é que foi isso?

É, mas nós só conseguimos filmar, porque quando voltamos houve um conflito com o produtor, que era um deputado de Minas Gerais. Esse era o filme oficial da Copa, da Fifa. Eles contrataram o Jarbas Barbosa para ser o produtor-executico, e ele contratou a mim e ao Saraceni para ser uma direção conjunta. E fora isso montamos 45 equipes, cada uma com três pessoas: um fotógrafo, um assistente e um técnico de som. Então, ao todo, eram mais de 120, 130 pessoas lá. Quarenta e cinco equipes nos campos, 5 equipes para cada jogo, para você ter idéia – porque às vezes tinha 4, 5 jogos, e tinha que distribuir essas equipes pelas cidades. E eu e o Paulinho ficamos com uma equipe cada um, eu fiquei com o Hélio Silva. Nós ganhamos duas BL’s, as primeiras que chegaram ao Brasil, já era a nova versão da câmera Arriflex. E nós saímos, eu e o Paulo, em busca da periferia, do que estava nos bastidores do jogo – do jogo a gente só coordenava um pouco a captação, que era uma coisa mecânica: os fotógrafos eram todos experientes em futebol, cada um sabia o que tinha que fazer. Nós estávamos nos bastidores: a gente entrevistava os jogadores no vestiário, os juízes, tudo aquilo que fazia parte do jogo. E tudo aquilo que estava em torno do jogo: eu, por exemplo, saí pelas favelas falando com o povo, na Praça de Maio, tirei depoimentos sobre a situação política – enfim, tinha uma liberdade de construir uma espécie de panorama, de clima do que estava acontecendo durante a Copa. Como é que esse povo vivia, os bares, o tango, o povo que não podia nem ver a Copa pela televisão – porque não havia exibição dos jogos para a Argentina, os jogos eram exibidos via satélite para o mundo todo mas o povo não podia ver os jogos. Ou ia ao estádio ou ouvia pelo rádio. Então tem coisas incríveis, eles simulavam os jogos de amadores com a camisa da seleção argentina, porque a única maneira de eles verem o futebol era na várzea. Quando voltamos ao Brasil tinha 60 horas de material filmado em 35 milímetros com tudo que você imagina, com todos os jogos e etc. E o produtor, já que o Brasil perdeu e o filme não tinha mais apelo, ele resolveu vender os negativos para a Argentina, afinal eles foram campeões, claro que iam se interessar. Nós descobrimos que eles queriam comercializar o negativo, quer dizer, a gente ia perder o filme. Nós trabalhamos quase 4 meses nesse negócio, chegamos lá um mês antes, com bombas estourando no hotel, e na hora de montar o filme não ia ter... Nós fomos à Embrafilme, falamos com o Roberto Farias e denunciamos que o negativo estava sendo transportado por navio para Buenos Aires – e a Embrafilme agilizou o Ministério, não sei quem mais, e prenderam o negativo no porto. E voltou para a Líder, era um caminhão de negativos. Então o produtor nos demitiu, a mim e ao Paulo César, e contratou o Maurício Sherman para montar um filme que ele nunca tinha visto na frente. O resultado é que o filme é apenas uma sucessão de jogos – e o material que era o recheio mesmo ficou abandonado, porque o Maurício não era capaz, nem seria, de montar, porque ele não participou. O som, inclusive, o Juarez, que era o técnico de som sumiu com o som, então tinha as entrevistas filmadas que não tina o som, nem pode entrar no filme, ainda bem. Essa foi a verdadeira maratona da Argentina, uma pena.

E depois desses filmes você nunca mais voltou a fazer cinema?

Eu tinha vários projetos que ficaram pela metade. Você está vendo esse roteiro? Dona Guindinha, é de um romance nordestino e está na Secretaria de Audiovisual.

Você pensa em filmar ainda?

Não, porque eu saí do Ceará e não vou voltar mais. É um romance do Manuel de Oliveira Paiva que se passa no final do século, é a história de uma transgressão de uma mulher casada com um latifundiário mais velho que trai o marido com o sobrinho dele. É baseado numa história verídica. Ela manda matar o marido, duas vezes: na primeira não consegue, na segunda sim – e termina com ela sendo presa. É um romance considerado um dos mais importantes do realismo, e só foi publicado 50 anos depois. Durante a minha estada no Ceará, eu tinha a idéia de fazer um filme nas mesmas condições do Profeta, fazer um filme com a Escola, com o Instituto Dragão do Mar, que seria o Dona Guindinha. Eu roteirizei durante uns seis meses, dei entrada na Secretaria do Audiovisual, começou a captação mas não consigo completar. Como outros milhares de filmes.

E como foi o seu trabalho no Instituto Dragão do Mar? Você ficou lá uns 4 anos, não?

Três anos. Foi muito interessante. Tem esse lado também de escola, para que eu sempre pendi, que é pendular em mim: eu faço filmes e também trabalho nas escolas. Tanto que eu fiz ECA, fiz UnB, fiz um período em Cuba. E a saída para o Ceará foi interessante porque me convidaram para coordenar e montar um instituto que não era uma escola de cinema, especificamente, era uma escola múltipla. Então tinha teatro – teatro ou dramaturgia – tinha cinema, televisão, dança e design. Na escola eram cinco núcleos que de certa maneira trabalhavam interativamente. Fora uma extensão cultural que a gente fazia: em três anos nós demos aula para mais de 18 mil alunos, para você ter uma idéia, em todo o interior do estado. Demos cursos de teatro, cinema, arte popular, teatro moderno – tudo que você possa imaginar, cento e tantos curso foram feitos. Então era uma revolução cultural de certa maneira, mas numa escola. Era uma mobilização social através de ensino das artes, que as expressões do povo – porque a gente trabalhava com o povo, nesses cursos básicos a gente trabalhava com pessoas que nunca tinham visto uma câmera. Eu tentei levantar, mobilizar, capacitar a formação de pessoas que viviam nas cidades mais longínquas do estado, talentos formidáveis que surgiram no projeto – foi um apoio a meninos que hoje, se tivessem continuado, teriam uma chance. Houve uma movimentação de jovens impressionante, que infelizmente se esgotou.

Mas como é aqui no Brasil, tudo dura um governo só.

Tudo é assim. Mudou o secretário de cultura e foi tudo por água abaixo, mudaram-se as prioridades. Como nós vivemos dentro de grandes conflitos, pessoais, sociais e etc., esse foi um deles. Eu aprendi muito também, a experiência foi muito interessante, foi inovadora também para mim. Eu troquei contato com pessoas que nunca tiveram oportunidade de fazer um vídeo, de se expressar através do audiovisual, do teatro. E numa região em que não há, você não tem outra maneira de aprender a não ser através dessa na escola. Porque aqui nos grandes centros nós temos 5, 6 escolas com curso de cinema, mas lá era mais complicado.

E, para finalizar, eu queria saber se você tem algum projeto em mente, se está trabalhando num filme novo.

Eu estou trabalhando num triângulo amoroso que é uma forma de reconstituir a música do Lupicínio Rodrigues. Eu peguei 365 músicas dele e reduzi para 22 que contam uma história, a história de um amor que entra em conflito. Eu estou trabalhando em cima disso, um musical que trabalha sobre a transgressão, só que é um musical que tem uma trilha sonora dos anos 50 e uma vivência do ano 2000, vai se passar agora. Eu estou roteirizando, estou num primeiro tratamento mas estou achando que ainda faltam mil coisas. A história é um ensaio de um show, de um musical do Lupicínio, onde a música dele começa entrar dentro das pessoas, como se fosse imanações.

Já tem nome?

Nervos de Aço. Eu tenho entusiasmo de fazer esse filme, agora eu não sei se sai. Eu tenho tempo, eu espero, tenho paciência para isso.

Entrevista realizada por Juliano Tosi

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