As Tears Go By

Ah Wah (Andy Lau) entra no ônibus, Ngor (Maggie Cheung) fica no ponto a acenar-lhe adeus: é sempre a dicotomia ‘máfia’/amor que permeia As Tears Go By. Estréia de Wong Kar wai como diretor, o filme abre com Andy Lau dormindo, sendo já dia claro, enquanto o telefone toca: é uma tia histérica que lhe diz ter mandado sua prima – que ele não conhece – para passar alguns dias em sua casa, pois que ela está com problemas de saúde e precisa ir ao hospital naquela cidade. Alguns momentos depois, a campainha toca e, ao abrir a porta, Wah vê Maggie Cheung do outro lado, moça de enorme candura e cuja fragilidade é redobrada por uma máscara cirúrgica no rosto. Wah volta a dormir e a deixa só o dia todo, a atender ao telefone que não para de tocar; é Fly (Jackie Cheung) que pergunta por Wah, a quem se refere como "Big Brother", a cada cinco minutos, mas que pede que o rapaz não seja acordado de maneira alguma.

O primo só se levanta depois de o sol já ter caído há tempo e, antes que Ngor consiga lhe dar os mil recados, mais uma vez Fly liga. O Big Brother sai logo em seguida e mais uma vez deixa Ngor só. É então que se revela a realidade sobre Wah: pertencente a uma certa irmandade mafiosa, a ele cabe cuidar de Fly, seu "irmão menor". Vemos o irmãozinho cobrando uma dívida de um tipo estranho e escandaloso – aliás, é isso que esteve a fazer o dia todo, e o motivo por que precisa de ajuda. Assim que Wah entra no bar, uma espelunca onde se joga Mah-Jong, ele consegue o pagamento, mas não se antes aplicar uma boa sova no endividado, manobra que não dura mais que poucos segundos. Saindo do lugar, dá uma porcentagem a Fly, que o fita com admiração e se dirige a uma boate. Lá Wah discute com a namorada por esta ter feito um aborto sem ao menos tê-lo consultado. Relacionamento terminado, o jovem volta para casa, onde seu semblante desolado desperta a curiosidade de Ngor, que lhe pergunta o que se passa. A simples menção de que se poderia tratar de coração partido, dor de cotovelo encoleriza o primo, que novamente deixa a moça sozinha.

Esses primeiros minutos de As Tears Go By já deixam perceber que se trata de um filme de gênero, um filme de gângster, e conta Wong sobre isso: "Na época, por causa do sucesso de Alvo Duplo (A Better Tomorrow, 1986) de John Woo, os filmes de gângsteres andavam com muita força e eu, como diretor novato, eu queria fazer um, mas que fosse diferente do que eu tinha podido vem em Hong Kong. Eu queria fazer um filme sobre jovens gângsteres". E é exatamente o fato de tratar de jovens gângsteres que permitiu ao jovem diretor (Wong Kar wai contava com apenas 32 anos na época) se destacar, – foi inclusive convidado a exibir As Tears Go By em Cannes – deixando que seu estilo próprio aparecesse: as cores vibrantes, a mudança da fotografia, repetição de cenas sob ângulos diferentes, pontos de vista imprevisíveis, tudo isso já está lá, mesmo sem a presença de Christopher Doyle e de William Chang, que só se juntaram a Wong a partir de Days of Being Wild, em 1990.

Porém o diferencial de As Tears Go By, o que o torna realmente especial em relação aos outros gangster-movies é a história de amor sem futuro entre Wah e Ngor. E aqui retomamos o fio do que contávamos há pouco: a prima, depois de fazer alguns exames e constatar que melhorou, volta para casa. É antes convidada por Wah para jantar, mas interrompida pela entrada retumbante de um dos irmãos completamente arrebentado. Ngor ajuda então o primo a prestar os primeiros socorros ao ferido.

Um laço se cria entre os dois e, antes de ir embora, a prima deixa dúzias de copos como presente (devido a sua vida mais que agitada, todos os copos de Wah acabavam por se quebrar), dizendo que um dos copos ela havia escondido para que o primo se lembrasse dela quando o achasse. Toda essa história sobre copos, nós a ficamos sabendo no dia em que Wah acorda e os encontra acompanhados por um bilhete; é a voz de Maggie Cheung em off que se ouve – uma obsessão wongiana.

À medida que o tempo passa, o primo precisa tirar Fly de situações cada vez mais perigosas, pois o irmãozinho não consegue ter calma o suficiente e acaba por se meter em encrencas enormes. E é depois de arranjar-lhe um emprego como ambulante – a vida de mafioso não é para Fly – e encontrar-se por acaso com sua ex, agora seriamente comprometida, que Wah volta a pensar em Ngor.

Ele vai atrás da bela, mas a descobre com outro; desolado, Wah volta para casa, atirando antes, porém, o último copo, aquele escondido, no mar. A prima, todavia, sente algo por ele e envia-lhe uma mensagem pelo bip pedindo-lhe que a espere. E os dois se encontram e se beijam apaixonadamente, enquanto ouvimos como trilha a famosa "Take My Breath Away". Em cantonês. Os primos ficam juntos, mas no dia seguinte Fly envia uma mensagem, dizendo precisar de Wah. Este parte, prometendo a Ngor voltar.

Toda a grandeza de As Tears Go By está na figura de Wah, que se divide entre o que considera justo – tomar conta de Fly, ser honrado – e seu amor por Ngor, amor que já nasce sem esperança, sem futuro. Se o deslocamento no mundo e a conseqüente busca de si, busca por uma identidade são as características mais fortes no cinema de Wong, é mesmo em seu début que elas aparecem.

Wah não pode escolher o que lhe é mais importante, mas sabe que este ir e vir, deixar e reencontrar Ngor não pode durar muito. E é o código de honra que permeia os filmes de gângsteres tradicionais que decide o destino do jovem: um homem deve fazer aquilo que deve fazer. E ele parte atrás de Fly, mais uma vez. E ele deixa Ngor, mais uma vez. Pela última vez. Acontece que seu irmãozinho quer se mostrar importante para a família e se compromete a matar um informante da polícia. Wah o acompanha nessa tarefa kamikaze e salva Fly, salva-o ainda uma vez: quando seu protegido erra o tiro e é baleado pela polícia, Wah caminha por entre os policiais e dá um tiro certeiro, acabando com a vida do informante. Ele sabe o que deve fazer e morre logo em seguida pelas mãos dos policiais.

A cena que fecha As Tears Go By, o corpo de Ah Wah estendido no chão, nela está contido o paradoxo de sua vida: da vida que desejava (com Ngor) e da vida que possuía (como gângster). Paradoxo tamanho, pois que cada faceta do jovem se mostrara tão forte, imensa e inebriante quanto à outra, que leva à impossibilidade de qualquer vida mesmo.

Juliana Fausto