Anjos Caídos




Leon Lau e Michelle Reis em Anjos Caídos de Wong Kar-wai

"A estrada não é longa. Sei que logo descerei da moto. Mas estou sentindo tanto calor agora...", narra uma das personagens principais ao fim de Anjos Caídos, quinto filme de longa-metragem de Wong Kar-wai. Essa fala, contudo, pode ser a chave para a compreendão de toda a sua obra, baseada no instante, no elemento fugaz do tempo, da impossibilidade de permanência de qualquer coisa. Não por acaso, os fins são sempre recorrentes em seus filmes: os fins de relacionamento, as mortes, as viagens... tudo que denota movimento. E uma tal visão de mundo pede obrigatoriamente essa estética apressada, artificial, da beleza superficial, que já foi tantas vezes interpretada como esteticismo vazio por vários críticos. O cinema de Wong repousa, ao contrário, numa lógica da incompletude (o que é muito diferente de vazio), numa forte tentativa de agarrar o mundo com os pés, ou de tentar prender um pouco d'água com as mãos. Tudo sempre no fim escapa.

A imagem mais recorrente do filme também explica muito da arte de seu diretor. É uma imagem de exterior, feita a poucos metros da casa de um dos personagens. Do lado esquerdo da tela, vemos a janela de um quarto (um quarto onde não se realiza um amor desejado); do lado direito, a vista da janela, que dá para um trem bala que, do alto, atravessa a cidade, a toda velocidade. Os personagens de Wong são como esse trem-bala; só que a cidade eles têm que cruzar por baixo, e é isso que causa todos os problemas. Eles não têm começo nem fim, estão sempre em pleno momento, obrigados a viverem nele, desgarrados obrigatoriamente de qualquer raiz ou fim a alcançar. É o sentimento de toda uma geração da qual Wong Kar-wai é o único representante no atual cenário do cinema contemporâneo.

Anjos Caídos se estrutura a partir da vida de quatro personagens, que compartilham suas emoções com os espectadores através de uma voz off que isenta Wong de realizar imagens naturalistas. Sim, não estamos no terreno do verossímil – não, pelo menos, no verossímil comum dos filmes de ficção. O diretor se dá uma liberdade (ajudado pela hábil mão de Christopher Doyle, diretor de fotografia) que poucos cineastas podem se dar; usa filtros estranhos, películas de outra sensibilidade, fast-forwards, câmara lenta, luz estourada, vídeo, etc. A fugacidade dos personagens é acompanhada pela fugacidade das imagens. O filme se abre com a apresentação do personagem de Leon Lau, um matador de aluguel que gosta de ter essa profissão porque ele não precisa fazer decisão alguma. Ele tem uma espécie de secretária/administradora (interpretada pela ex-miss Michelle Reis) que, apesar de trabalhar com ele por exatos 155 dias, só o viu uma vez ou duas. Num outro canto da cidade de Hong Kong, Ho, um jovem desempregado (Takeshi Kaneshiro), que ficara mudo ao comer um abacaxi enlatado que havia passado da validade, arromba a porta de lojas à noite para dar uma de vendedor. Ele acaba encontrando (e se apaixonando) em uma de suas perambulações uma mulher que vive ao telefone xingando uma tal loura que teria lhe roubado o namorado. E é uma loura – coincidência? –, histérica e espevitada, que acaba conhecendo e tendo um caso com o personagem do matador. São essas quatro figuras os anjos caídos que nos revelam as suas intimidades através dessas vozes off que estruturam a narrativa do filme.

Esse relato das experiências finitas e do desencontro dos sentimentos se revela sobretudo nos momentos em que os personagens estão sozinhos diante da câmara. A administradora é apaixonada pelo matador, mas este não quer se prender a nada. Num encontro marcado, ele chega antes no local e pede ao barman que entregue a ela uma moeda e lhe diga um número. Essa será a chave, mais tarde, para uma mensagem que ele dá a ela. Quando ela chega no bar, digita o número na jukebox para escutar uma música em que a cantora Shirley Kwan entona lânguida e docemente a frase "esqueça-o". A música – sempre entre o cool e o abertamente melodramático, como todas as suas trilhas sonoras – dominará o filme com a sua declaração de desesperança. Ela será tocada mais algumas vezes até o fim do filme.

Se o fim de uma possibilidade se apresenta com força no relato de Anjos Caídos, o fim da vida também exerce um papel incisivo: o mudinho Ho filma, num dia, o seu pai fazendo comida. Essa fita será motivos de riso do pai, mas dias depois ela transforma-se em única lembrança do filho: o pai morre e o único recurso do filho é observar aquelas imagens, voltar a fita, corrê-la continuamente, o que dá à imagem do pai uma deformação (aumentada pela baixa resolução de uma filmagem em vídeo comum) correspondente ao sentimento da cena. A saída de Wong para filmar a cena não poderia ser mais bela: ele nega o contracampo ao espectador, ele não mostra em nenhum momento o semblante do filho que assiste a essas imagens. Só vemos a imagem do vídeo, entre rewinds e forwards, é sabemos simplesmente pela força do momento criado por Wong que Ho está chorando.

Todas essas quatro vidas que aparecem diante da tela são as vidas de anjos caídos, ou seja, daqueles seres perfeitos, puros, que entretanto uma vez caíram na tentação de desejar algo que não poderiam ter. E, de fato, cada um se apresenta em sua mitomania, em seu desejo de concretização de uma felicidade estável, imutável (um ideal platônico de contemplação da idéia, talvez). Mas eles caem; isso quer dizer que eles terão que tentar procurar a felicidade como elemento fugaz de existência, acontecendo mais como momento do que como estado, existindo apenas no movimento de sua realização: a felicidade só reside no instante. E é essa toda a disposição do cinema de Wong Kar-wai: filmar esse instante da fugacidade, esse instante que deve ser embelezado ao cúmulo para que se conquiste um quinhão de felicidade; por isso essa necessidade fragmentada, cheia de efeitos anti-realistas, essa beleza posada, artificial e superficial que se assemelha ao iconismo do videoclip (mas que ao mesmo tempo serve de chave para desvendá-lo enquanto imagem-fetiche), esses cortes bruscos, essas quebras de continuidade, esses ângulos incomuns. Todos esses efeitos, toda essa arte é a forma que Wong tem de traduzir em cinema a beleza do momento. E até agora, seu cinema vem conseguindo.

Ruy Gardnier